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sábado, 25 de março de 2017

«Mar», poema de Vinicius de Moraes

Foto encontrada em www.midiorama.com
















Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.

terça-feira, 21 de março de 2017

Excerto do capítulo sexto – «Terra Firme» – da novela «Casa da Malta», de Fernando Namora

 Foto encontrada em https://sol.sapo.pt

A princípio, o mar, a praia, o casario de madeira, o falar das gentes, tinham sido para ela um encantamento. Mas um ano depois já estava ao balcão como forçada. Era uma pessoa fora da sua terra. Doía-lhe a saudade das colinas, das vinhas que o sol fascinava, da voz do vento coada pelas ramagens, dos corvos do alto, das searas, da terra firme. Mas não lhe saía um queixume do peito. Ia à vila buscar os artigos, regateava um centavo, em pouco convencera o homem a alugar cas junto às dunas, e ainda ali ia persegui-la a voz do mar, ressoante do vento e dos búzios. De princípio, os pescadores, desconfiados da gente da serra, não entravam: preferiam outra venda no fundo da lagoa, que nascia de um braço transviado do rio, o dono tocava sanfona, fazia serenatas, até era chamado pela gente da cidade. Carminda, porém, queria vencer.
O homem troçava dos seus esforços, mordiscava-a:
– Anda, vai chamá-los…!
Mas Carminda queria regressar vencedora à sua terra e oferecer a capela a S. Brás. Levou um lindo galo à mulher do Clemente, fiscal do mar, um avental bordado à Mari Dolores, filha do arrais. E então eles foram-se encostando ao umbral da sua venda, entre o entrar e o não entrar, à espera da maré. E em breve metade do povo era seu. Vinha o enchido da serra e os homens gostavam do paladar. Cercou umas braçadas de areia da banda do norte da cas com tábuas espetadas ao alto; de noite, pegava num canastro e andava quilómetros para buscar terra, terra negra, terra onde pudesse crescer uma coisa verde. Plantou uma horta e uma dália. Uma dália vermelha, um ser vivo nascido da terra, que a aragem do mar esmorecia. Mesmo assim, era um sinal da sua ideia. Mais tarde, forrou a sal de jantar e o quarto a crespo e cal. Contava o dinheiro dia a dia, com as portas já cerradas, embora João António se revoltasse em silêncio contra aquela conquista das suas tarefas e direitos. Enquanto ele ressonava, indiferente, Carminda abria os olhos para a negrura das tábuas do tecto e entregava-se aos braços do sonho. Haviam de partir dali já com o dinheiro para a capela e par a compra da quinta da Mata. O marido nunca adivinhara esse ódio ao mar, aos pescadores, à lagoa adormecida. Julgava-a contente com aquele bem-estar. Por seu lado, criara amizades, gostava de uma caldeirada na praia com bom vinho maduro, dos camisolões de Inverno que espantariam os camaradas lá da aldeia. A ideia da terra ia-se esbatendo. Aqui, para ele, não havia enxada, nem penúrias, e o dinheiro entrava. Com a gravidez da mulher, mais se pegou ao mar: era ali a sua vida, a sua gente, gostava de contemplar as vagas do cimo das falésias, dava-lhe um saboroso quebranto físico. Na saída dos barcos para a pesca, quando as proas se empinavam às ondas, e o mulherio esbracejava, aos gritos, as viúvas agoirentas rezando nas dunas, então tremia. Mas até isso era grandioso.
E Carminda, agora, com aquela ideia de ter a criança na aldeia! Que fosse. «O meu filho.» Como se fosse uma coisa já viva, como se essa coisa já viva não pertencesse ao mar, ao povo que lhe tinha dado o pão, como se nem a ele, pai, pertencesse também. «O meu filho.» E falava com um rancor de posse, de ódio, aloucada. Que fosse, então. E ele, a bem dizer, havia de gostar desses meses de liberdade, dessas noites que passaria na cidade, como solteiro…

In «Casa da Malta» (novela), de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, s/d (15ª edição).

quarta-feira, 8 de março de 2017

[– Não custa limpar os pés como deve ser, pois não?], excerto do livro «Jesus Cristo bebia cerveja», de Afonso Cruz

Imagem encontrada em https://www.esfmp.pt

Os dias sucedem-se iguais, uns atrás dos outros, e a rotina infiltra-se na carne como música nas orelhas. O Verão deixa entrar o Outono na sua casa; e este, o Inverno; e a diplomacia das estações sucede-se.
Rosa corre pela chuva e chega à casa de Santos & Santos. Com a roupa molhada, tira, com alguma dificuldade, as chaves de uma mala demasiado cheia e abre a porta da rua. Fecha o guarda-chuva, sacode-o e encosta-o à parede, e depois tira o lenço que traz na cabeça e sacode o cabelo como fazem os cães molhados. Passa os sapatos pelo tapete e dirige-se à cozinha, mas pára porque ouve um grito. Vira-se, avermelhada, pois aquela voz é terrível. Dona Clotilde é responsável por todas as empregadas da casa. Cita filósofos alemães enquanto aspira. Gosta de Kant, apesar de dizer: aquilo não era um filósofo, era um relógio. Uma pessoa pode saber que horas são só por pensar como ele. Rosa ouve-a com paciência, engole os seus gritos de desespero pelo corredor que, acabado de limpar, está novamente sujo, com lama. No meio dos gritos ouve citações de Heidegger e até já sabe uma ou outra frase de Ser e Tempo e outras higienes. Dona Clotilde enviuvou ainda relativamente nova, não tinha mais de quarenta anos, mas deixou-se entristecer eternamente sem outro consolo que não a limpeza do mundo. Tem propriedades em Lisboa e não precisa de trabalhar, mas vê a limpeza como uma missão: quer limpar o mundo. E não há nada melhor do que o chão, pois é aí que o mundo começa. No fundo, dona Clotilde sente-se um símbolo, alguém que limpa a parte mais baixa de todas, aquilo que está ainda mais baixa do que os nossos pés, limpa aquilo que pisamos.
A lama é uma ofensa tremenda à civilização, e o carácter de dona Clotilde jamais permitiria a barbárie espalhada pelos patamares de mármore e corrimãos e flores de plástico. São milhares de anos de sociedades sedentárias, para depois andarmos a pisar toda a nossa História com sapatos sujos. Rosa suspira e recua para a entrada para voltar a limpar os pés, mas isso ainda irrita mais dona Clotilde. Está a fazer pior ao chão, na perspectiva de poupar o resto do corredor. O raciocínio pode ser correcto, mas ver aquele espaço da entrada a encher-se de sujidade é algo que dona Clotilde é incapaz de tolerar. A sua cara ruboriza-se e chega a levantar a mão, um gesto de que prontamente se arrepende. Por isso disfarça e transforma o seu movimento numa palmadinha nas costas de Rosa.
– Muito bem – diz ela. – Não custa limpar os pés como deve ser, pois não?

In «Jesus Cristo bebia cerveja», de Afonso Cruz, Penguin Random House Grupo Editorial Unipessoal, Lda. (chancela da Alfaguara), Lisboa, Novembro de 2015 (1.ª edição).