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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

[Voa-lhe a alma, por vezes, a outra cidade, a esse Porto de vinte e cinco], excerto de «Guilhermina», romance biográfico de Mário Cláudio

Porto – Fotografia encontrada http://arquitectura.ufp.pt/
A primeira inclinação será, de quem por fim a si próprio se adapta, no sentido de reconstituir os lugares de menino. Assim se vai passar com a longínqua Guilhermina, quando os empresários em propostas se sucedem já, de entrevistas gastronómicas para os lados de Covent Garden. Voa-lhe a alma, por vezes, a outra cidade, a esse Porto de vinte e cinco, com os aquartelamentos em polvorosa, o aeróstato que sobre a turba se desloca, as mercearias que para o passeio rebentam seu stock de tachos e vassourame, de sacos de vária qualidade de grão. Aí duram os pais, desavindos sempre, Augusto que anda tocando por aqui e por além, Elisa que as etapas segue da filha, enquanto alguns conselhos respiga de um almanaque ensebado. Numa casa da Rua da Alegria irá a violoncelista reuni-los, um pouco sorrindo da unção patrística, apanágio dos pândegos como o papá, que admoesta ser já altura «de pensarem com tino e se convencerem de que não há coisa melhor do que a boa harmonia da família, por causa dos remorsos que mais tarde mortificam bastante». Num dislate contínuo é que a tribo sobrevive, com o duo recomposto, Felisbela, a filha natural, as sonsas criadas que a acção e o verbo dos amos não deixam de policiar. E um inferno, amistoso quase, se encena, com silêncios que entremeiam os ágapes de bacalhau, furtos inexplicáveis, gritadas trocas de satisfações. Ora é o espaço privativo que se invade, ora Glória, a de dentro, que com o faunesco patrão um entendimento mantém inadmissível. Desaparecem os bolos e o colarzinho da boneca, um rumor de tempestade no tecto sobrenada de tudo isso. Será Elisa a mais sensível, excelente relatora de quanto vai sucedendo, a Guilhermina dando parte epistolar, com um que outro remoque contra FB, que assim denomina a bastarda intrusa. Conserva-se esta, aliás, bem de fora das peripécias, dormitando pesadona e de luzes acesas, apressada saindo para esse sítio onde, violoncelista ainda, o repasto acompanha de meia dúzia de macambúzios, que uma banana descascam com detida precaução. A Queen Annes’s Gate chegam as novas, sem vírgulas, à fada-madrinha de todos, meu bijou, meu encanto, na emulação em que os pais entre si a disputam. E a dadivosa Guil, que as despesas paga em troca só de algum desvelo, quando a ciática lhe dá ou um gerente ignora a fila onde ordenara lhe reservasse três lugares, quase nunca se lastima. Consulta a irmã, amoravelmente casada no Quai de Bourbon, torna à pauta sobre a estante, com a habitação do Porto e os moradores acondicionados num recanto de seu afecto.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote). 

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