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domingo, 19 de setembro de 2021

Excerto da novela «Um Homem Obscuro», de Marguerite Yourcenar


    A casa de Amesterdão tinha bom ar; o tio mandou entrar o sobrinho para o pequeno compartimento onde tratava com os fregueses. Elias comprara o fundo do livreiro-impressor em cuja casa fizeram e sua aprendizagem; era uma pessoa considerada e ganhava bem, sem demasias. Fora obrigado a consagrar a essa aquisição o produto da venda da velha quinta familiar; de momento, não lhe seria possível pôr de parte esse capital aplicado no negócio, mas os sobrinhos não deixariam, mais tarde, de o ver duplicar. Natanael aquiesceu vagamente; não percebia nada dessas combinações. Elias, porém, reanimou-se ao saber que Natanael possuía alguns rudimentos e uma bonita e legível caligrafia. O tio tirava os seus proventos mais chorudos dos bons autores gregos e latinos cuidadosamente corrigidos e editados por doutos professores de Leida ou de Utreque, mas as correcções eram onerosas quando confiadas a gente diplomada, ainda que a morrer de fome. Só tinha consigo dois revisores qualificados, os quais se ocupavam também da paginação, dos índices, das rubricas à margem e dos títulos. Natanael ficaria a ganhar um pouco menos que esses trabalhadores já veteranos, mas o bastante para viver bem. Não devia esperar morar e comer a meias com a família; Elias outra coisa não queria, mas sua mulher, que era de boas famílias e de esmerada educação, não suportava subordinados à sua volta. Natanael ficaria a dormir num canto da oficina até encontrar melhor poiso.


    Agradeceu o rapaz: o lugar, para se instruir, valia bem a escola de Greenwich. Elias levou-o a visitar tudo aquilo. A tipografia ficava situada num pátio sem saída para a rua; ouvia-se o rumorejar de uma fonte. Viu a sala das prensa manuais, a sala dos compositores debruçados sobre os caixotins, o armazém com os rolos de papel e a sala das vendas e das embalagens, de onde os volumes ainda cheiravam a tinta partiam para a Alemanha, para a Inglaterra e até mesmo para rança e Itália; haviam afixado na parede a lista das obras proibidas nesses vários países, cujo envio levaria à apreensão e a perdas de monta. Vestidas de velino ou de carneira, as belas edições, orgulho de Elias, cobriam um exíguo parlatório, ladeadas por alguns deformados tomos de genealogia ou de história, por dicionários ou compêndios onde os revisores, em caso de dúvida, tinham a possibilidade de verificar um nome próprio, uma palavra insólita ou uma expressão inusitada. Um desses esquadrinhadores de palavras era um homem de meia-idade, meticuloso, como nenhum outro, mas azedado pela pouca sorte, pois, a seu ver, se tivesse sabido fazer as coisas, era ele, e não Elias Adriansen, quem deveria ter comprado a livraria bem afreguesada de Johannes Jansseonius. O outro, bom compincha, estivera outrora na posse de uma cátedra num colégio, de onde, a acreditar nele, a inveja dos colegas o havia apeado. Esse, enquanto trabalhava, ia cantarolando em grego uns versinhos de Anacreonte, que acomodava a árias da moda. Se não fossem as ressacas da bebida, teria esse prodígio de saber dado conta de tudo: só que as ressacas duravam vários dias.

    Estes dois comparsas ensinaram-lhe de bom grado os ossos do ofício, como fosse ler um texto às avessas, para não se deixar distrair do sentido das palavras, ou entregar-se de alma e coração ora à caça dos erros de pontuação, ora dos erros de sintaxe, ou ao alinhamento, ou às maiúsculas. O seu latim escolar, cujas falhas ele bem conhecia, fazia com que fosse mais lento e ao mesmo tempo mais cuidadoso que esses dois habilidosos; não tardaram a descarregar sobre ele as tarefas mais fastidiosas. Preso de escrúpulos e na esperança de instruir-se, Natanael fazia timidamente, de quando em vez, uma ou outra pergunta aos doutos que frequentavam o belo parlatório do livreiro. Discutiam esses sábios duramente, com Elias, o preço dos seus trabalhos, posto o que se deixavam ficar a fumar a sua cachimbada. A um desses, erudito em antiguidades romanas, perguntou ele a data de um consulado para pôr à margem de uma página de Tito Lívio. O sábio suspeitou de que aquele fulano quisesse apanhá-lo em flagrante delito de ignorância, ou pelo menos de dúvida, e virou-lhe as costas. 

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In Como a Água Que Corre (livro que integra as novelas “Anna, Soror…”, “Um Homem Obscuro” e “Uma Bela Manhã”, incluindo os posfácios que autora escreveu para cada uma das novelas, a par das notas do posfácio de “Anna, Soror…”; e uma nota bibliográfica, pela editora Bárbara Palla e Carmo), de Marguerite Yourcenar (traduzido do original Comme l’eau qui coule por Luiza Neto Jorge, com revisão de José António Almeida), Colecção Novis (n.º 18)/Biblioteca Visão (venda conjunta e inseparável da revista Visão), ACJ (uma empresa do grupo Abril Controljornal Edipresse), Linda-a-Velha, 2000.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Novidades Literárias

21 de Julho de 2018 

Houve um período, que felizmente acabou há já algum tempo, em que acreditei que, se uma narrativa não fosse absolutamente nova, se não fosse comparável senão a si própria e a nada mais, melhor seria deitá-la fora. Tratava-se de uma atitude extremamente presunçosa e ao mesmo tempo extremamente ingénua. Assentava na hipótese não declarada de eu ser dotada de capacidades extraordinárias, seguindo-se daí que, se essas capacidades não se manifestassem em obras absoluta e preciosamente únicas, me restava tirar lucidamente as seguintes conclusões: estava a trair-me a mim própria por preguiça, por facilitismo, ou a minha hipótese era completamente infundada. Em suma, não valia a pena escrever, se não estivesse em condições de escrever coisas que fossem, ao mesmo tempo que completamente diferentes, melhores do que livros que amava e que tinham estado na origem da minha obsessão narrativa. Com o tempo mudei de opinião. Hoje fio-me pouco nos que dizem: eis um livro verdadeiramente novo. De verdadeiramente novo em literatura não há senão o nosso modo extremamente individual de usar o depósito da literatura planetária. Estamos mergulhados naquilo que nos precedeu. Não entendo os manuais escolares que alinham cronologicamente autores, vidas e obras, das origens aos nossos dias, nem a lista detalhada das leituras que fizemos dos sete anos em diante. Não há um antes do qual sejamos o depois. Toda a literatura, grande ou medíocre que seja, é nossa contemporânea, acumula-se à nossa volta enquanto escrevemos, é o ar que respiramos. Por conseguinte, as nossas páginas nunca são “novas” no sentido que a indústria cultural dá ao adjectivo. Constituem antes a marca do modo como, querendo ou não querendo, nos alimentamos da tradição para exprimir – no seu interior – a nossa individualidade. Nenhum autor isolado esgota em si próprio a literatura produzindo textos sem dívidas. Não existem obras que cortem cerce com o passado, obras que o dispensem, obras que separem as águas. A novidade literária – se se quiser mesmo insistir nesse conceito – é dada pelo modo como cada indivíduo habita o magma pelo qual é arrastado. Tarefa árdua, portanto, distinguir-se e talvez também não realmente necessária. Surpreendem-me os que exibem provocantemente a sua “novidade”, que se consideram únicos, que não querem admitir influências. É uma exibição espectacular de arrogância para uso dos media, ou uma manifestação do terror de não se conseguir ter uma individualidade própria, como se esta só se pudesse manifestar negando a matéria literária que nos constituiu e constitui. Na realidade nem sequer Homero foi alguma vez “novo”. Provavelmente o autor singular toma a cada vez forma, graças a um esforço de reordenamento do material literário que o precede. E de facto já não é pouco.

Crónica de Elena Ferrante (com tradução de Miguel Serras Pereira), incluída no livro «A Invenção Ocasional», Relógio D’Água Editores, Lisboa, Julho de 2019.

 

Notícias a cântaros



14 de Julho de 2018

    Não tenho a obsessão de me sentir informada sobre tudo o que acontece no mundo. Em mais nova limitava-me a passar os olhos por alguns títulos de jornal e via o noticiário televisivo sem qualquer continuidade. Foi o crescente interesse pela política, que explodiu por volta dos vinte anos, que me impeliu a acumular notícias. Tinha a impressão de ter vivido até esse momento de maneira distraída e tive medo de vir a viver a minha vida sem me dar conta sequer dos desastres, dos horrores à minha volta. Temia tornar-me uma pessoa superficial, com as suas cumplicidades inconscientes, com o seu desinteresse culpado. Assim, impus-me a leitura dos jornais e, como me pareceu que tal não bastava, passei aos livros de História Contemporânea, à Sociologia, à Filosofia. Houve um período em que, violentando a minha natureza, deixei até de ler romances, uma vez que isso me parecia roubar tempo à necessidade de viver o meu tempo com olhos bem abertos. Mas não fiz grandes progressos, era sempre como se houvesse entrado na sala depois de o filme ter já começado e tivesse de me esforçar por me orientar. Onde estava o bem, onde o mal? Quem era justo, quem injusto? Quem interpretava os factos e quem os distorcia? Um esforço que não acabou, pois antes me parece hoje mais difícil do que no passado procurarmos compreender como vai o mundo sem descobrirmos, já tarde, que fomos distraidamente coniventes com a corrupção do género humano. A chuva ininterrupta de notícias não ajuda, não ajudam os livros, não ajudam as sempre novas fórmulas sociológicas que simplificam brilhantemente a realidade. Tenho, pelo contrário, a impressão de que o sistema da informação, nas suas articulações em papel e electrónica, impõe aos cidadãos uma espécie de caos informativo, uma condição em que, quanto mais nos informamos, mais nos confundimos. O problema, portanto, para mim, não é estar informadíssima, mas detectar na massa inutilmente dilatada das notícias as que me sirvam para distinguir a tempo o verdadeiro e o falso, o melhor e o pior. Tarefa dificílima. Tive sempre uma grande admiração por quem, do interior das convicções mais diversas, na desordem que é própria de todo o presente, intuiu desde o início os perigos enormes do nazi-fascismo e os denunciou com coragem. Mas seremos ainda capazes de sermos sentinelas que vêem longe? Existirão hoje condições para vermos longe? Às vezes parece-me compreender porque é que nós, mulheres, somos cada vez mais leitoras de romances. Os romances, quando funcionam, servem-se de mentiras para dizer a verdade. O mercado da informação, na sua guerra em torno das audiências, tende cada vez mais a transformar as verdades mais insuportáveis em romanescas, apaixonantes, gratificantes mentiras.

Crónica de Elena Ferrante (com tradução de Miguel Serras Pereira), incluída no livro «A Invenção Ocasional», Relógio D’Água Editores, Lisboa, Julho de 2019.

sábado, 30 de janeiro de 2021

O CAVALO












Teus poros exalam o fumo

Do lar dos deuses de onde vieste.

Rompante de espuma e de lume

És sol quadrúpede ou mar equestre?

 

Desfilando derramas o ouro

Do teu rio inacabável,

Desmedido relâmpago louro

De um deus equídeo possante e frágil.

 

Tudo existiu para que fosses

Na contraluz desta madrugada *

Mitológica proporção perfeita

Em purpúrea bruma recortada.

 

Pois que te é divino mister

Humanos olhos extasiar

A dúvida é só perceber

Se vieste do sol ou do mar.


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Poema de Natália Correia inicialmente publicado no Jornal de Letras (Abril de 1988) e recolhido na obra Poesia CompletaO Sol nas Noites e o Luar nos Dias, com prefácio da autora, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.

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*NOTA: O verso original é: No contraluz desta madrugada

ODE À PAZ - Exorcismo para as mães voltarem dos montes



Cesse o ímpio desterro, ó Mães, e redivivo

Restaure o rito as torres das primitivas crenças!

Vossa espectral ausência foi-nos tempo perdido

      Em factícias ciências.

 

Fomos nós que fugimos ou vós as foragidas

De um descarnado credo? E em vagos horizontes

Do nosso sangue errais, a prantear-nos longínquas…

      Ó Mães, descei dos montes!

 

Estorcem-se em batalhas os campos dolorosos

E, numa correria por sonhos maus, em trânsito,

De guerra em guerra, somos um vaguear de autómatos

      Numa névoa de sangue.

 

Perdulários perdemos os nossos nomes próprios

E nas cinzas do verbo os números ensinam

A lógica mais triste de sermos uns para os outros

      Motivos de chacina.

 

Antes que as flores expirem numa lenta agonia,

Passe um bando de mísseis e nos leve nas garras,

De iluminar o nada a luz fique vazia

      E apodreçam as águas,

 

Antes que o tempo venha morrer nos nossos olhos,

Voltai do monte, ó nácar das madrugadas rústicas!

Ó Mães! Se os próprios deuses são vossos filhos pródigos,

      Perdoai nossas culpas!

 

Das moradas do ser éreis o muro e a telha,

Lençol tecido por mistérios femininos;

Numa inocência agrária, a lenha, o linho e a ideia

      Segura dos caminhos.

 

Éreis, de madrepérola, os pilares dos céus claros,

A pureza do pão e a limpeza dos ventos.

Foi isto há tanto tempo. Para que estrela mudastes

      As colunas do templo?

 

Onde cantam as aves que emudeceis nos ecos?

Nascem e morrem os deuses. Só vós que os procriais

E lhes fiais os fados sois por cima dos séculos

      Puramente imortais.




 







Vinde, sábias de novo, inspirar os oráculos,

Expulsar dos vaticínios os rostos funerários.

Apressai-vos, ó Mães! Que as pestes já estão prontas

      Nos nossos calendários.

 

No tráfego da ira, semáforos nucleares

Já impedem o trânsito para as últimas esperanças.

Vinde, meigas e mágicas ó fadas minerais

      De perdidas lembranças!

 

Com a frescura da origem voltai e novamente

Brilhe o ovo de prata de que somos nascidos,

A paz entre nos sonhos; e à casta nascente

      Retrocedam os rios.

 

Cesse o nosso castigo, Mães, despegai da cruz

A estampa triste deste agonizar infindo.

O deus prostrado e tétrico que ensanguentou a luz

      Também é vosso filho.

 

Que pomba nos trará notícias do armistício,

Que rosa deixará um perfumado rasto

Quando um deus condenado à lição do suplício

      Diviniza o holocausto?

 

Libertai-o e entre os deuses dai-lhe o lugar sadio

De filho humilde às vossas sentenças naturais.

Adorar só um deus é um orgulho sacrílego

      Que não nos perdoais.

 

Vinde fartas e férteis, claras vogais do verbo

Formosíssimas ânforas de bondade uterina!

Esconjurai, ó frutíferas!, os senhores dos ponteiros

      Que marcam a chacina.


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Poema de Natália Correia, Poesia CompletaO Sol nas Noites e o Luar nos Dias, com prefácio da autora, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.

domingo, 3 de janeiro de 2021

As ruas de Combray evocadas por Marcel Proust


    […] Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do comboio quando chegávamos na semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela às distâncias, e, quando nos aproximávamos, mantinha aconchegados em torno da sua grande capa sombria, em pleno campo, contra o vento, como uma pastora às suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão perfeitamente circular como uma cidadezinha num quadro de primitivos. Para morar, Combray era um pouco triste, como eram tristes as suas ruas, cujas casas, edificadas com as pedras escuras da região, precedidas de degraus exteriores e com seus telhados de beirais salientes que faziam sombra, eram tão escuras que, mal começava a declinar o dia, já era preciso erguer as cortinas nas «salas»; ruas de graves nomes de santos (vários dos quais se ligavam à história dos primeiros senhores de Combray), Rua de Santo Hilário, Rua de S. Tiago, onde ficava a casa de minha tia, Rua de Santa Hildegarda, para onde davam as grades, e Rua do Espírito Santo, para onde se abria o portãozinho lateral do seu jardim; e essas ruas de Combray existem num local tão recôndito da minha memória, pintado a cores tão diferentes das que revestem agora para mim o mundo, que na verdade me parecem todas, bem como a igreja que as dominava na praça, ainda mais irreais que as projecções da lanterna mágica; e em certos momentos parece-me que poder atravessar ainda a Rua de Santo Hilário, poder alugar um quarto na Rua do Pássaro – a velha hospedaria do Pássaro Ferido, de cujos respiradouros saía um cheiro de cozinha que, intermitente e cálido, ainda sobe por momentos na minha memória – seria entrar em contacto com o Além de um modo mais maravilhosamente sobrenatural do que se me fosse dado conhecer Golo e conversar com Genoveva de Brabante.
    A prima de meu avô – minha tia-avó –, em cuja casa habitávamos, era mãe dessa tia Leónia que desde a morte do marido, meu tio Octávio, não quisera abandonar, primeiro Combray, depois, em Combray, a sua casa, depois o seu quarto, depois o seu leito e que não «descia» nunca, sempre deitada, num estado incerto de pesar, de debilidade física, de doença, de ideia fixa e de devoção. O seu apartamento particular dava para a Rua de S. Tiago, que findava muito além, no Prado Grande (por oposição ao Prado Pequeno, verdejante no meio da cidade, entre três ruas) e que, uniforme e pardacenta, com os três altos degraus de pedra diante de quase todas as portas, parecia um desfiladeiro talhado por um imagista medieval na mesma pedra em que houvesse esculpido um presépio ou um calvário. Minha tia, na verdade, não habitava mais que duas salas contíguas, passando de tarde para uma, enquanto arejavam a outra. Eram desses quartos de província que – da mesma forma que em certas regiões há partes inteiras do ar e do mar iluminadas ou perfumadas por miríades de protozoários que nós não vemos, – nos encantam com os mil odores que neles exalam as virtudes, a prudência, os hábitos, toda uma vida secreta, invisível, superabundante e moral que a atmosfera ali mantém em suspensão; odores naturais, sim, e cor da natureza como os dos campos próximos, mas já caseiros, humanos e confinados, a fina geleia industriosa e límpida de todos os frutos do ano que deixaram o pomar pelo armário; odores provenientes das estações, mas mobiliários e domésticos, a corrigir o picante da escarcha com a doçura do pão quente, ociosos e pontuais como um relógio de aldeia, vagabundos e ordeiros, descuidosos e previdentes, roupeiros, madrugadores devotos, felizes de uma paz que só nos traz mais ansiedade e de um prosaísmo que é um grande reservatório de poesia para aquele que a atravessa sem ter vivido no seio dela. O ar estava saturado da fina flor de um silêncio tão nutritivo, tão suculento, que eu só me aventurava por ali com uma espécie de gula, principalmente naquelas manhãs ainda frias da semana da Páscoa, em que melhor o saboreava porque mal acabara de chegar a Combray; antes que entrasse para cumprimentar minha tia, faziam-me esperar um instante na primeira sala, onde o sol, ainda invernoso, viera aquecer-se diante do fogo, já aceso entre os dois ladrilhos, e que saturava toda a sala de um cheiro de fuligem, tornando-a como uma dessas grandes «bocas de forno» do campo, ou desses panos de chaminé de castelos, a cujo abrigo nos vem o desejo de que rebente lá fora a chuva, a neve, até mesmo alguma catástrofe diluviana para acrescentar ao conforto da reclusão a poesia do Inverno; eu dava alguns passos, do genuflexório até às poltronas de espesso veludo, sempre revestidas de cabeceiras de croché; e o fogo, que cozinhava como se fosse uma massa os apetitosos cheiros de que se achava coalhado o ar do quarto e que já tinham sido trabalhados e «levantados» pela frescura húmida e ensolarada da manhã, folhava-os, dourava-os, enrugava-os, tufava-os, fazendo deles um invisível e palpável bolo provinciano, uma imensa torta, na qual, depois de ligeiramente saboreados os aromas mais estalantes, mais finos, mais respeitáveis, mas também mais secos, do armário, da cómoda, do papel de ramagem, eu voltava sempre, com inconfessada cobiça, a envisgar-me no odor medíocre, pegajoso, insípido, indigesto e enjoativo da colcha de flores.

    
No quarto próximo, ouvia minha tia falar sozinha a meia voz. Sempre falava muito baixo, porque supunha ter dentro da cabeça alguma coisa de quebrado e flutuante, que ele poderia deslocar se falasse muito forte, mas nunca permanecia muito tempo, mesmo sozinha, sem dizer alguma coisa, porque julgava que isso era bom para a garganta e, impedindo que o sangue ali parasse, tornaria menos frequentes as sufocações e angústias de que sofria; e depois, na inércia absoluta em que vivia, emprestava às suas mínimas sensações uma importância extraordinária; dotava-as de tal motilidade que lhe era difícil guardá-las para si e, na falta de confidente a quem comunicá-las, anunciava-as a si mesma, num perpétuo monólogo que era a sua única forma de actividade. Infelizmente, tendo adquirido o hábito de pensar em voz alta, nem sempre reparava se havia alguém no quarto próximo, e muitas vezes eu a ouvia dizer a si mesma: «Tenho de me lembrar de que não dormi» (pois nunca dormir era a sua grande pretensão, pretensão de que a nossa linguagem guardava as marcas e o respeito: pela manhã, Francisca não ia «acordá-la», mas «entrava» no seu quarto; quando minha tia desejava fazer uma sesta, diziam que ela queria «reflectir» ou «repousar»; e quando lhe sucedia descuidar-se na conversa a ponto de dizer: «o que me despertou» ou «sonhei que…», ficava vermelha e corrigia-se em seguida). […]

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Ilustração sobre Combray da autoria de Stéphane Heuet, 1998.

[Excerto do primeiro volume da obra «Em Busca do Tempo Perdido» («I – No Caminho de Swann», com tradução de Mário Quintana), de Marcel Proust]