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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

NA PRAÇA PÚBLICA, poema de José Régio


Pintura de Malangatana

Subi ao púlpito negro
Por minhas mãos levantado;
Levantado
Por minhas mãos esgarçadas…
E, da tribuna mais alta,
Arrepelando os cabelos,
Gritei à malta:

– «Camaradas…!

«Eh, camaradas…! ouvi,
«Que vou dizer-vos quem sois,
«Pois vou dizer-vos quem sou.»

Depois,
Tudo o que penso de mim,
A minha boca o gritou.

Gritou assim:

– «Desde Job
«Que sofro as minhas feridas
«E as minhas resignações.

«Bastou: preciso falar!
«Job, deixa uivar os leões!
«(Tens uma jaula no seio…)

«Que este meu ar,
«Estas vagas mãos caídas,
«Estes vagos olhos fitos,
«Este vago riso alheio,
«– Não sei quem foi que mos deu!

«Eu…?!

«Eu sou um doido aos gritos,
«Um que torce as mãos e berra,
«Com olhos cegos de pó,
«Com boca cheia de terra,
«Com sangue roxo nas unhas,
«Com micróbios nos pulmões…

«Job,
«Abre a grade aos leões!

«Camaradas…! Camaradas…!

«Eu sou um velho realejo
«Que, farto já de esmoer
«Velhas valsas descoradas,
«Desandou,
«E desatou a gemer
«Coisas que ninguém do mundo
«Lhe ensinara,
«E que ele sempre guardara
«No fundo,
«Lá tão no fundo…!

«Eu?!, camaradas!

«Eu sou o esboço de Alguém
«Que esteve quase a nascer,
«Mas não nasceu.

«… Quem me não deixa ser eu?!

«Viver
«É, para mim, duvidar,
«Desvairar,
«Interrogar,
«Procurar-me,
«Torturar-me,
«Agarrar fumo nas mãos,
«E acenar a uns meus irmãos
«Que sinto perto, e não vejo
«Por causa da multidão…

«Sou um desejo
«Que não tem satisfação!...
«Embrião
«Que nunca pode ser flor,
«(É esta a minha tragédia
«E é esta a minha comédia)
«Sou a Linha do Equador,
«Que fica entre Cá e Lá…

«Senhor!...
«Responde, Senhor,
«Meu Autor,
«Criador nosso,
«Culpado disto que sou!:

«Por que animaste o esboço
«Da Obra que te falhou?

«Ah, camaradas…!»

E eu ia, enfim, revelar-me!
Não sei que vento
Me levantava os cabelos
E me arrastava
Num turbilhão…
Todo eu era um alarme
Que vibrava!
Abria-se-me a prisão!
Abriam-se
As minhas fontes fechadas!
Meus olhos doidos, fundiam-se
Em lágrimas que nasciam
Do coração…

Então,
Parei, sentindo risadas
Entre aqueles que me ouviam.

E as suas caras diziam:
– «Que charlatão!»

In «Poemas de Deus e do Diabo» (com oito desenhos do Autor e «Introdução a uma Obra»), de José Régio (Obras Completas), Brasília Editora, Porto, Julho de 1972 (8.ª edição).

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