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Sofro, noite!
Não as dores metafísicas que os homens suam nas estrelas
para enfeitarem a fome da aristocracia das nuvens.
Não o terror súbito de nos vermos sozinhos na terra
sem uma voz nos astros que nos diga: «Cá estamos nós
também!»
Não a tortura de saber se existe ou não existe
um Deus de carne igual à nossa a dar ordens às pedras.
Não a agonia dos lamentos que saem dos poços para o céu
e erram de árvore em árvore, de monte em monte, de corola
em corola
com lobos voadores nos uivos dos vendavais.
Não o suor dos anjos na via láctea. O anseio do infinito.
A angústia da sombra sem raízes.
Não o sufocar da treva no corredor cada vez mais
estreito, cada vez mais estreito, cada vez mais estreito…
Não o assombro dos lírios negros. O gemer das almas nos
cruzeiros
e todos os sofrimentos da lua habitada por fantasmas…
… Mas por outras razões mais desesperadamente vis,
mais limitadamente exíguas e directas,
como esta mulher de xaile aqui na minha frente
a sofrer o mistério da fome
perdida na noite imensa,
na noite inquieta,
na noite absurda
cheia de crianças a chorar
lágrimas para além das estrelas,
ah! mas mais profundas e eternas
do que todos os mistérios do universo
com o céu e o inferno dentro da cabeça dos homens.
Lágrimas! – ouviste, noite?
Lágrimas de crianças espantadas de haver olhos sem
lágrimas na vida.
Lágrimas de carne humana a rasgarem o frio dos penedos
e a molharem de lume o clamor dos bichos
presos à solidão da terra.
Lágrimas, ouviste?
Ah! poetas: não olhemos mais para o céu.
Deixemos os mistérios para depois
quando não houver na noite
outras razões de sofrer mais vis.
Não olhemos mais para o céu!
Abaixo as estrelas, a lua, a via láctea
e todo esse espectáculo de luzes
como um candelabro de cometas
a iluminar a festa da miséria
no palácio do mundo.
Abaixo os astros! Essas caricaturas das lágrimas dos
homens
de propósito belas e suspensas
para nos esquecermos das outras
que nos doem, nos olhos,
a inutilidade de chorar.
Lágrimas! – ouviste, noite?
Lágrimas de grito!
Lágrimas de beber!
In «Poeta militante – Viagem do Século
Vinte em mim» (1.º volume), obra poética completa de José Gomes Ferreira,
colecção «Círculo de Poesia», Moraes Editores, Lisboa, Outubro de 1977 (1.ª
edição).
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