Imagem retirada de www.blogclubedeleitores.com
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Fumiko, num tabuleiro, trouxe duas taças.
Eram cilíndricas – e uma era uma
Raku vermelha, e a outra uma Raku preta.
Colocou a taça preta diante de
Kikuji – e Kikuji logo se apercebeu de que se tratava de um chá vulgar.
Pegando na taça, tentou saber de
que mãos de oleiro ela saíra, observando-a sob todos os ângulos. Sem cerimónia,
perguntou:
– Que peça é esta...?
– Penso que uma Ryonyu [Raku, porcelana de Kyoto, com
origem no séc. XVI. Ryonyu (1756-1834) foi o nono mestre dos fornos de cal de
Raku].
– E a vermelha...?
– Também uma Ryonyu.
– Parecem ser um par. – E Kikuji
olhou para a taça vermelha, que Fumiko, sem lhe tocar, mantinha sobre os
joelhos.
Embora fossem peças rituais, a
verdade é que, fora do contexto, mais pareciam simples chávenas de chá – e logo
uma imagem desagradável, tal um relâmpago, se implantou na mente de Kikuji.
Morrera o pai de Fumiko – e o pai
de Kikuji continuara a viver. Ora não teria acontecido que este par de Raku...
Isso, isso: aquelas duas peças não teriam sido utilizadas como simples chávenas
de chá quando o pai de Kikuji vinha visitar a mãe de Fumiko? Não teriam sido
usadas como chávenas de chá de «um casal», a preta nas mãos do pai de Kikuji, a
vermelha nas mãos da senhora Ota...?
Se eram na verdade Ryonyu, qualquer
pessoa teria de estar atenta, não se descuidando enquanto as tivesse nas mãos.
Mas teriam essas duas taças, enfim, participado em excursões, levadas pelo
«casal»...?
Fumiko, certamente a par destas
coisas do passado, talvez se estivesse a rir dele. Mas Kikuji não viu qualquer
espécie de malícia, nem tão-pouco uma atitude calculista, no facto de ela haver
trazido até ele aquelas duas peças de chá... Compreendeu a sentimentalidade da
jovem, sem dúvida com um certo ar juvenil, mas uma sentimentalidade que,
afinal, também o afectava.
Ele e Fumiko, visitados pela morte
da mãe dela, sentiam-se incapazes de se desfazer daquela ridícula (ou
melodramática?) sentimentalidade. Aliás, o par de taças Raku acabara por
aprofundar o desgosto que os atingira a ambos.
Agora, aquela terna
sentimentalidade... Kikuji encolheu os ombros. Oh, sim! Fumiko estava a par de
tudo: as relações do pai dele com a mãe dela; as relações desta com ele
próprio; a morte, finalmente, da senhora Ota. Depois – ambos tinham partilhado
a atitude de esconder aquele tão dolorido suicídio...
Fumiko (via-se nos seus olhos um
pouquinho avermelhados) tinha chorado enquanto se dera à delicada tarefa de
fazer o chá. E logo Kikuji:
– Estou feliz por ter vindo hoje
aqui. Muito me tocou o que há pouco disse... Lembra-se? Que entre os vivos e os
mortos não pode haver perdão. Ora bem... Devo pensar ou não que fui perdoado
pela sua mãe?
Fumiko acenou que sim:
– Se não fosse assim – disse –, a
mãe também não podia ser perdoada. Ela é que não se perdoa a si própria.
– Mas, de qualquer maneira, não
deixa de ser terrível que eu esteja aqui consigo...
– Porquê...?
E ela levantou os olhos para ele:
– Acha que foi mau para ela ter
morrido? Pois saiba que me mantenho um tanto fria... Tenha-se ela equivocado ou
não, ou mesmo que ninguém a tenha compreendido, penso que a morte não deveria
ter sido a sua resposta à situação em que se viu envolvida. A morte rompe com
todo o entendimento, corta toda a compreensão. Penso que nunca ninguém deveria
esquecer isso.
Kikuji mantinha-se silencioso.
Pensava, lá muito no seu íntimo, se também Fumiko encaminhava os seus passos
para uma confrontação final com o segredo da morte. Estranho, na verdade, que
ela tivesse dito que a morte punha termo a toda e qualquer compreensão...
In «Chá e Amor», romance de Yasunari Kawabata (prefácio e tradução de Pedro Alvim, a partir da versão inglesa de Edward G. Seidenstiker; revisão de Alice Araújo), colecção Escola de Letras, Vega Editora, Lisboa, 2007 (4.ª edição).
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