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Coimbra, 17 de Junho – A leitura do último volume do Journal de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo deste meu Diário. Por que razão profunda eu o
escrevo e publico, e que interesse confessional ele tem que possa atrair e
lisonjear aquele público que se masturba na ilusão de ser em certas horas o
confessor do artista? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma
ideia romântica. Só uma mentalidade byroniana pode conceber o absurdo de se
julgar pólo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí
que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma
insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. O masoquismo de
Rousseau tem esta base. Ora se, apesar de tudo, um romantismo residual existe
necessariamente em cada artista (e emprego o termo, não como chancela de
escola, mas como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se
coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo,
há um doseamento quase terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o
primeiro seja um essencial doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação.
Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica literária que as
transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No meu Diário creio que há muita literatura, também. É certo que nem
sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que
toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este
camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se
sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde
devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem
provas do que na minha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de
lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e de alegria.
Mas quem é que não conhece estas
minhas misérias à saciedade, e sabe tão-pouco de artistas que ignora a falta de
sintonização do estado receptivo com o estado de criação? De resto, um diário
não é necessariamente um perpétuo mea
culpa. Pode ser um simples memento,
um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. Que
nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me um absurdo. Pela
minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a
esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim,
evitando-lhe o espectáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e
da vida que precisam de silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito,
e mesmo assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico, história
patológica de um tímido, e não obra literária, aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que
saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa
curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices
doentias.
In «Diário (3.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Dezembro de 1973 (3.ª edição).
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