Fotografia
encontrada em aves-birds-oiseaux.blogspot.com
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Coimbra, 28 de Junho – Numa ínsua que fica em frente da janela do meu quarto há
um melro que começa a cantar ainda mais cedo do que eu. Rasga a manhã com
assobios tão frescos e lavados, que a sonolência que me fica das insónias
desfaz-se e dá lugar a uma vontade lúcida de o acompanhar nos gorjeios. A
desgraça é que ele é ave e eu sou homem. As nossas modulações paralelas nunca
se encontram. Os poemas dele, orvalhos de som, entram na sinfonia cósmica da
natureza, e perdem-se no feliz anonimato das coisas que a mão direita deu sem a
esquerda saber. Os meus, esses ficam enclausurados numa pasta, prudentemente à
espera que mil artimanhas os consigam levar meia-dúzia de ouvidos impuros.
In «Diário
(5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição,
revista).
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