De Vinne, T. L. : The invention of printing. London, 1877
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Coimbra, 5 de Julho – Na tipografia, a ver trabalhar lado a lado máquinas impressoras,
desde o velho prelo renascentista até à última rotativa americana. O prelo já
só tira provas; mas dele em diante o número de folhas vai subindo até ao
infinito. Não são, porém, as características de rendimento que, a meu ver,
separam significativamente os vários modelos e espelham a constante
trajectorial de toda a criação humana. A ideia de Gutenberg não mudou
profundamente na sua essência, porque, ao fim e ao cabo, estamos sempre diante
de aparelhos de imprimir caracteres em papel, e o maior ou menor número de
exemplares conseguidos numa unidade de tempo diz respeito apenas a um
aperfeiçoamento de articulações. O que me parece ter realmente interesse na
comparação destas realizações é a arquitectura aparente de cada uma. O prelo
pode ser comparado a uma capela românica, sem nenhum ornamento e sem qualquer
desvio da intenção original. Há uma simplicidade genial na sua estrutura, que
lhe dá uma beleza recolhida e perene. Mas já na máquina seguinte esta singeleza
se perdeu, e qualquer coisa de flamejante perturba a serena criação da
primeira. No último modelo, então, estamos caídos no barroco integral, pasmados
e ajoelhados perante um número infinito de rodinhas, de parafusos, de
aspiradores, de cilindros e de fios. No colosso que há-de vir, nem vale a pena
falar, de tal grandeza será o delírio...
Quanto aos operários que manobram
estes engenhos, os que movem o prelo estão numa espécie de fraternidade
imediata com ele, que lembra a pureza das relações com Deus na tal sé de arco
redondo, onde o corpo se sentia pelo menos tão seguro como a alma. No gótico já
pouco desta comunhão se mantém. O espírito sobe, mas a carne desce. E é pouco
mais ou menos o que acontece com a máquina seguinte. Uma vez que foi possível
aplicar-lhe uma polia, o impressor começa a pairar naquele movimento como a
sombra de um defunto. Na rotativa actual, é de ver, o homem perdeu inteiramente
o pé na realidade, e, à semelhança da posição do crente nas igrejas
setecentistas, é já só aos ornamentos que os seus olhos ficam atidos. Basta-lhe
carregar num botão, para que a sua desumanização comece.
Por ter esta ânsia de chegar ao seu
barroco imaturamente, é que a civilização mecânica corre o perigo de se perder
ou de perder a humanidade. Matam a cabeça e o corpo equipas de sábios a
conceber um Spitfire, e ainda ele está no estaleiro já se precisa dum Meteor!
Exactamente o que aconteceu com o cinema, que, de sofreguidão, se devorou.
Parte da humanidade não tinha acabado sequer de abrir os olhos para a maravilha
(e em Portugal a maior parte das pessoas nem diante dos olhos a tiveram), e já
a maravilha estava na sua decadência!
A máquina é dos mais perfeitos
milagres do nosso tempo. Se não fosse ela, que oporíamos nós à Grécia, nós que
não fomos capazes de uma filosofia nova, de uma arte nova, de uma plenitude
espiritual e física que se lhe comparem? Mas, como todos os milagres, tem o seu
perigo: o de a gente pôr neles uma fé tão cega que não fique lugar para a
presença céptica da razão que os fez.
In «Diário (3.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Dezembro de 1973 (3.ª edição).
In «Diário (3.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Dezembro de 1973 (3.ª edição).
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