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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

[Chegou-se até a pensar que não ficaria um só botão nas magras cerejeiras da ilha], excerto de «O Tumulto das Ondas», de Yukio Mishima

Yukio Mishima
Nunca mais chegava o dia em que os barcos não saíssem para a pesca. Ora, dois dias depois de Hiroshi ter partido na excursão, a ilha foi atingida por uma tempestade que impediu toda e qualquer saída aos barcos. Chegou-se até a pensar que não ficaria um só botão nas magras cerejeiras da ilha, que naquela altura começavam a florir.
Na véspera, um vento excepcionalmente húmido para a estação enfunar as velas e, ao pôr-do-sol, o céu incendiara-se de maneira inesperada. Ondas alterosas vieram agitar o mar; a praia rugia; os bichos-de-conta marinhos e os piolhos do mar correram a abrigar-se em lugares mais elevados. Durante a noite soprou um vento forte misturado de chuva. Do céu e do mar chegavam sons como ecos de lamentos e assobios...

Deitado na esteira, Shinji ouviu estas vozes da tempestade. Compreendeu que era dia feriado par os pescadores. O tempo havia de estar demasiado mau até par reparar as artes de pesca ou para tecer cabos. A Associação da Juventude não poderia sequer levar a cabo o seu trabalho de desratização.
Como não queria acordar a mãe, pois, pela respiração dela, vira que ainda dormia, Shinji, que era um filho atencioso, deixou-se ficar no leito, sonhador, aguardando em vão que a primeira luz cinzenta assomasse à janela. A casa estava a ser terrivelmente sacudida e a janela gemia. Uma chapa arrancada, sabe-se lá de onde, veio cair com enorme estrondo. Todas as casas da aldeia de Utajima, grandes e pequenas, eram construídas da mesma maneira: apenas com um rés-do-chão, com a latrina à esquerda da entrada de terra batida e a cozinha à direita. Na casa, mergulhada na semi-escuridão da alvorada, exposta a um vento louco, dominava um só cheiro: o cheiro das latrinas que flutuava tranquilamente de um lado para o outro, sufocante, frio, obsessivo.
A janela que dava para a parede de adobe do armazém da casa vizinha tingiu-se lentamente de um tom cinzento. Shinji ergueu o olhar para a chuva que caía a potes, martelando os alpendres e escorrendo pelas vidraças. Antes, Shinji detestava os dias sem pesca, pois privavam-no do prazer de trabalhar e do ganho correspondente, mas, hoje, tal expectativa parecia-lhe um feriado esplêndido. Contudo, não era um desses dias de festa com o céu azul, bandeiras e balões doirados resplandecentes. Era um dia de festa com um mar em fúria, um vento que uivava ao passar nas copas das árvores.
Incapaz de ficar ali à espera, o jovem saltou fora da esteira, enfiou umas calças e vestiu uma camisola de gola alta negra, toda esburacada.
Pouco depois a mãe acordou e, dando com a silhueta de um homem a recortar-se na janela a que a alvorada deitava os primeiros tons de claridade, soltou um grito.
– Olá! Quem está í? – exclamou.
– Sou eu.
– Ai! Que susto me pregaste! Vais à pesca com um tempo destes?
– Os barcos hoje não vão para o mar, mas...
– Então o melhor é ires deitar-te outra vez. Ai, que pensei que era um estranho que estava aí!

In «O Tumulto das Ondas», de Yukio Mishima (tradução, a partir do francês, de Manuel Resende; revisão de texto: Anabela Prates Carvalho e Michelle Nobre Dias), Colecção «Ficções» (n.º 176), Relógio D’Água Editores, Lisboa, Fevereiro de 2012 (1.ª edição).

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