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La Carolina, Hotel Cervantes, 20 de Abril de 1951 – Quis o acaso que fosse debaixo da sombra tutelar do grande nome de D. Miguel de Saavedra que eu passasse esta noite, antes de penetrar nas planuras que foram, por assim dizer, o pergaminho telúrico onde escreveu a sua história imortal. Uma espécie de velada literária, que humildemente agradeço aos deuses.
A avaliar pelo que já
se adivinha, não vou certamente encontrar nada que se pareça com um ambiente
inteiramente característico, inconfundível, específico, daquela desmedida
aventura. Estradas intermináveis, solidão e secura, são o pão-nosso de cada dia
nesta Ibéria de Deus. O génio é que tem o dom de tornar flagrantes os cenários
das suas criações, iluminando-lhes de tal maneira o exterior com a luz interior
da acção, que a obra acaba por nos parecer uma realidade apenas possível no
palco onde nos foi mostrada.
No céu que seja, um odre de vinho,
furado, é um odre de vinho a esguichar. Mas se for a estocada do sublime louco
que o atravesse numa hora de cegueira combativa, então estamos numa taberna
concreta descrita a páginas tantas. Quantos moinhos de vento há por Portugal
adiante a pedir a mesma investida que nos de Espanha praticou o Cavaleiro da Triste
Figura! Tivesse o nosso Frei de Luís de Sousa, em vez de gramática, imaginação,
e a força alada destas velas remendadas pertenceria às que em Santarém empurram
penosamente a dura mó dum pão quotidiano.
O destino, porém, determinou que
fosse a dois passos de aqui que a pena inspirada e fantasista dum homem fizesse
a maior sinalização geodésica de que há memória. «En un lugar de la Mancha...»
Não conheço livro nenhum tão nitidamente plantado. Só a Bíblia tem um princípio
com igual marcação. Mas o verbo do
Génesis é Terra no D. Quixote.
Terra de Castela a Nova, seca, calcinada, onde as patas do Rocinante ainda gora
erguem poeira.
Quando se pensa no pano de fundo
das grandes criações da humanidade, não é positivamente a sua cor local que nos
convence. Embora referenciadas, a verdade é que qualquer paisagem lhes serve.
Cervantes, esse, com medo talvez de que o grande duelo do espírito que ia fazer
travar entre o fidalgo e o seu escudeiro pudesse transformar-se numa justa por
demais abstracta, teve o cuidado de assinalar devidamente no mapa do mundo o
terreiro preciso onde os comparsas haviam de se movimentar. E, pelos séculos
dos séculos, peregrinos como eu virão encaixilhar na desolação dos horizontes
intermináveis que eu ainda mal descortino o perfil do magro sonhador. A nascer
dum chão inóspito e a rasgar com a ponta o cetim do céu vazio, a sua lança entende-se
melhor. É uma espécie de açucena de ferro e pau, alucinada entre a maldade dos
homens e a indiferença de Deus.
In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).
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