Johann Froben, impressor e
editor suíço (imagem encontrada em https://fr.wikipedia.org) |
Com a Renascença nasce uma nobre profissão: a de
impressor. As obras, até aí raras e inacessíveis, cuja expansão, forçosamente
minguada, dependia dos copistas, que, além de morosos, algumas vezes as
abastardavam, passam a difundir-se a baixo preço, escapando ao privilégio de
certas classes, estabelecendo um traço de união entre os que se isolam para
esconder a sua indocilidade aos severos preconceitos. Os escritos dos mestres
gregos propagam-se, finalmente, no seu texto original, numa pureza que, com
frequência, havia sido viciada pelos comentadores, a crítica afirma-se, a discussão
é favorecida. Em Veneza, Basileia, Lião, Francoforte e Paris, enquanto as artes
se libertam das convenções místicas, restaurando o culto da beleza corporal, e
os navegadores, apoiados numa nova concepção da arte náutica e do desenho dos
navios, desvendam regiões ignoradas, alargando os domínios da inteligência, e
os intelectuais universalizam as suas ideias, nessas cidades abrem-se oficinas
de impressão, fundadas e orientadas por espíritos esclarecidos, que fazem
ressuscitar Platão, traduzir Aristóteles e Teofrasto, que levam a todo o mundo
os escritos clássicos e dos que preparam uma fulgurosa jornada da história da
humanidade. O poder deste instrumento de convívio e disseminação da cultura
pode medir-se pela resistência que lhe é oposta, pelo rancor dos esbirros que
queimam as obras impressas em fogueiras de intolerância e de pânico.
Um desses construtores do novo mundo que quer conhecer-se
e emancipar-se através do livro é Frobénio, célebre editor de Basileia,
divulgador do humanista Erasmo. Ele é um dos que sentem a necessidade de
mudança e de pensamento inconformista, de expansão de ideias novas e de
libertação das faculdades criadoras do homem, amodorradas durante a Idade
Média, ao mesmo tempo que se revaloriza o saber clássico, esteio dessa mesma
inquietude.
Mas Frobénio adoece gravemente, com uma ferida infectada
do pé, que depressa lhe inflama todo o membro e lhe envenena o organismo. Os
médicos terão de amputar-lhe a perna, embora se receie que essa mutilação não
baste para travar a marcha da terrível gangrena. No povo, entretanto, fala-se
de um homem estranho, chamado Paracelso, meio demónio, meio louco, que serena
os atormentados, cura os sifilíticos e profere violentos anátemas contra os
médicos estiolados numa ciência escolástica, nos erros dos mestres do passado,
esquecidos das luminosas lições da natureza. É um homem truculento e
imprevisto, boémio, de hábitos grosseiros, curtindo bebedeiras em cima de uma
enxerga, para a qual se atira, a desoras, mesmo vestido, embora pouco depois,
alucinado, se levante brandindo uma espada contra imaginários opositores, um
homem que abençoado pelos humildes, a quem alivia das moléstias, e escarnecido
pelos doutores, percorre aldeias e cidades apregoando uma revolucionária
medicina. Apóstolo ou herege, lunático ou predestinado, os seus dotes de médico
são invulgares.
Erasmo, desorientado com a doença do amigo, decide
confiar nesse discutido reformador da arte médica, e roga-lhe que visite
Frobénio. Paracelso observa a perna em decomposição, os indecisos médicos que
se agrupam em redor do enfermo, e grita-lhes:
– Sois vós, caçadores de piolhos, que permitis que este
organismo apodreça?
Erasmo, aturdido, ainda procura sofrear o indecoroso
aventureiro, mas baldadamente. As convenções, o bom senso, a cortesia hipócrita,
não servem a Paracelso. Os seus arrebatamentos vão sempre até ao fim. Por isso,
insiste:
– Haveis deixado gangrenar esta perna e, para vergonha
vossa, já não sabeis propor outra coisa do que o cutelo do açougueiro? Curo-te
eu, Frobénio. Expulsa estes farsantes de tua casa?
E Frobénio, na verdade, curou-se. Paracelso, mercê deste
êxito, conquista dois firmes partidários, que logo procuram persuadir os
magistrados a acolherem o insubmisso médico e a nomearem-no, apesar dos seus
duvidosos títulos e verdura de anos, prelector da Universidade. Frobénio, além
disso, publica-lhe algumas obras e tanto ele como Erasmo tentam impô-lo à
consideração da gente ilustrada, embora reconheçam os riscos a que se expõem.
Paracelso é um irreverente, um áspero antagonista, e para todos se mostra agressivo.
Uma nova doutrina, para florescer, não pode contemporizar com os que pretendem
refreá-la, necessita do fogo da luta da exaltação. Paracelso não chega a
Basileia para cortejar uma situação rendosa e confortável, mas sim para
demolir. Que não lhe exigissem, pois, boas maneiras. Os seus dois amigos
compreendiam estas verdades, também eles pertenciam ao movimento que se
propunha desembaraçar a cultura dos ídolos e dos dogmas, e, consequentemente,
não se amofinavam com as bizarrias de Paracelso. Em certas obras deste,
assinalam-se traços benéficos da influência de Erasmo e de Frobénio. (…)
In «Deuses e
Demónios da Medicina – biografias romanceadas» (primeiro volume), de Fernando
Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989 (7.ª edição).
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