Lasse
Söderberg – Fotografia encontrada em http://www.sydsvenskan.se/
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1
Um
mar de roupa macia invade o quarto de brinquedos. São toalhas de mesa
aguardando flamejantes dias de festa, roupas de cama rasgadas em honra da
madrugada, mantos caldos que escondem garras de ledo. Também as rosas são de
pano, rosas-malva do cadafalso como ligaduras apertadas, como pétalas secas cor
de raiva. Ouve-se o ofegar e o som de chicotadas! E no meio da confusa
ondulação, sob a bainha descosida de um vestido aparece à vista uma botina
vermelha. A brincadeira começou.
2
Eu era capaz
de estrangular os cães de colo e transformá-los em borlas de cortinados! Lá vêm
eles com o seu ar submisso, mas eu sei que são mal-intencionados, esses
pequenos proprietários arrogantes de pêlo azulado, bonitos laçarotes na cabeça,
ponta da língua rosada. Só sabem sentar-se nas patas traseiras e pedinchar. Não
lhes posso perdoar a insolência e não suporto que se tenham apropriado do
afecto das meninas. Não, hão-de ser borlas! Berloques! Pompons!
3
Tudo o que
não é céu é pele. Tudo o que não é pele é vertigem. Os caracóis do cabelo são
recordações deixadas pelos anjos. A sua passagem pela terra. Alice e as
companheiras de brincadeiras apinham-se em torno da cama desfeita, afogueadas.
Eu sei: elas domesticam o meu fantasma.
In «Coração de papel»,
de Lasse Söderberg (seminário de tradução colectiva Poetas em Mateus,
Abril-Maio de 1998: Ana Luísa Amaral, Egito Gonçalves, Fernando Amaro, Fernando
Pinto do Amaral, Gonçalo Vilas-Boas, Malin Löfgren, Manuel António Pina, Miguel
Serras Pereira, Pedro Mexia, Rosa Alice Branco; com revisão de Ana Luísa Amaral
e Gonçalo Vilas-Boas; e nota biobibliográfica de Gonçalo Vilas-Boas), Quetzal
Editores, Lisboa, 2001 (1.ª edição).
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