Precisamente.
Porque
Gengè, meus senhores, aquele estupidíssimo Gengè de Dida, minha mulher,
alimentava secretamente, sem eu saber de nada, uma ardente simpatia por Anna
Rosa. Dida metera isso na cabeça; Dida, que fizera essa descoberta. Nunca
dissera nada a Gengè, mas confidenciara-o, a sorrir, à amiguinha, para lhe
agradar e talvez também para lhe explicar que, se Gengè a evitava quando ela a
vinha visitar, lá tinha os seus motivos: tinha medo de se apaixonar por ela.
Não
me reconheço no direito de desmentir essa simpatia de Gengè por Anna Rosa.
Poderei, quando muito, afirmar que para mim não era verdadeiras; mas nem isso
estaria correcto, Porque efectivamente nunca me preocupara em saber se sentia
antipatia ou simpatia por aquela amiga da minha mulher.
Julgo
que já demonstrei suficientemente que a realidade de Gengè não pertencia a mim,
mas a Dida, minha mulher, que lha tinha dado.
Portanto,
se Dida atribuía ao seu Gengè essa simpatia secreta, pouco importa se para mim
ela não era verdadeira; era tão verdadeira para Dida que a levar a encontrar
nisso a razão pela qual eu me mantenha distante de Anna Rosa; e era tão
verdadeira também para Anna que os olhares que eu por vezes lhe dirigia de
fugida tinham sido em vez disso interpretados por ela como algo mais, pelo que
eu não era o Gengè engraçadinho e tontinho que a minha mulher imaginava, mas um
senhor Gengè infeliz que devia sofrer sabe-se lá que suplícios no seu corpo por
ser considerado e amado como tal pela própria mulher.
Pois,
se pensaram bem, isto é o menos que pode resultar das tantas realidades
insuspeitadas que os outros nos dão. Superficialmente, costumamos chamar-lhes
falsas suposições, juízos errados, atribuições gratuitas. Mas tudo aquilo que
se pode imaginar de nós é realmente possível, ainda que para nós não seja verdadeiro.
O facto de não ser verdadeiro para nós é motivo de troça para os outros. Para
eles é verdadeiro. Tão verdadeiro que pode até suceder que os outros, se não
nos agarrarmos com força à realidade que por nós mesmos nos demos, podem
induzir-nos a reconhecer que mais verdadeira do que a nossa própria realidade é
a realidade que eles nos dão. Ninguém teve, mais do que eu, experiência disso.
Vi-me,
portanto, sem saber de nada, enamorado de Anna Rosa e, por esse motivo,
envolvido no incidente do disparo na abadia duma maneira que nunca teria
imaginado.
Dando
assistência a Anna Rosa, depois de a ter transportado para casa em braços e
estendido na sua cama, ter corrido a buscar um médico e uma enfermeira, e
prestado os primeiros socorros que o caso requeria, também eu de repente senti
ser mais que possível, verdadeiro, o que ela imaginara de mim em consequência
das confidências de Dida: a minha simpatia por ela. E, sentado aos pés da cama,
na intimidade cor-de-rosa do seu quartinho agredida pelo odor desagradável dos
medicamentos, pude ouvir da sua boca todas as explicações. Em primeiro lugar, a
do revólver na bolsinha, causa do incidente.
Como
me ri com vontade, imaginando que alguém pudessem supor que ela o levar por
minha causa, ao marcar-me encontra na abadia!
Trazia
aquele revólver sempre consigo, na bolsa, desde que o encontrara na
algibeirinha dum colete do pai, que falecera subitamente, havia seis anos.
Pequenino, com o punho em madrepérola, muito luzidio e vivo, parecera-lhe um
brinquedo, ainda mais encantador por encerrar, no seu bonito mecanismo, o poder
de dar a morte. E confidenciou-me que mais de uma vez, em certos momentos não
raros, em que o mundo à sua volta, por estranhas angústias da alma, lhe parecia
estulto e vão, tivera a tentação de o pôr à prova, brincando com ele, sentindo
nos dedos, na macieza luzente do aço e da madrepérola, a delícia do tacto. Mas
que ele agora, não na têmpora ou no coração e não por vontade dela, tivesse
podido, por puro acaso, mordê-la num pé, e para mais correndo o risco – como se receava – de ficar coxa,
causava-lhe um desagrado invulgar. Acreditava que se tinha apropriado tanto
dele que ele já não tinha, para ela, esse poder. Agora, considerava-o mau. Tirava-o da gaveta da
mesa-de-cabeceira, junto à cama, olhavam para ele e dizia-lhe:
–
Mau!
E
porquê aquele encontra na abadia, no locutório da tia monja? E aquelas sete
freiras que, em vez de se preocuparem por ela estar ferida, me falavam, como
que obcecadas, da visita de não sei que Monsenhor?
Também
tive a explicação para este mistério.
Ela
sabia que naquela manhã Monsenhor Partanna, bispo de Richieri, iria visitar as
velhas irmãs da Badìa Grande, como costumava fazer todos os meses. Para as
velhas freiras, essa visita era como a antecipação da bem-aventurança divina;
por isso, correr o risco de a estragar por causa do infausto incidente for a para
elas a maior consternação. Fizera-me ir até à abadia porque queria que eu
falasse imediatamente, nessa manhã, com o bispo.
–
Eu, com o bispo? Mas porquê?
Para
obstar a tempo aquilo que se estava a tramar contra mim.
Queriam
realmente interditar-me, denunciando-me como mentalmente incapaz. Dida
informara-a de que já tinham sido recolhidas e organizadas todas as provas, por
Firbo, Quantorzo, seu pai e ela própria, para demonstrar a minha evidente
incapacidade mental. Muitos estavam dispostos a testemunhar; até aquele Turolla
que eu defendera contra Firbo e todos os empregados do banco; até Marco di Dio,
a quem tinha feito doação de uma casa.
–
Mas ficará sem ela – não pode conter-me sem fazer esta observação a Anna Rosa. –
Se eu for declarado como mentalmente incapaz, o acto de doação será nulo!
Anna
Rosa desatou a rir na minha cara, da minha ingenuidade. Certamente tinham
prometido a Marco di Dio que, se testemunhasse como eles queriam, não perdia a
casa. De resto, ele podia testemunhá-lo mesmo em consciência.
Olhei
expectante para Anna Rosa, que ria. Ela reparou e pôs-se a gritar:
–
Mas é claro! Tudo loucuras!, tudo loucuras!
Contudo,
regozijava-se com elas, aprovava-as, e ainda mais se o que eu pretendia com
elas era chegar realmente à maior de todas, isto é, arrasar o banco e afastar
de mim uma mulher que for a sempre minha inimiga:
–
Dida?
–
Não acredita?
–
Sim, inimiga; agora.
–
Não; sempre!, sempre!
E
informou-me que havia muito tempo que procurava fazer ver à minha mulher que eu
não era aquele néscio que ela imaginava, em longas discussões que lhe tinham
custado um esforço enorme para refrear o despeito que lhe causava a obstinação
daquela mulher em querer ver, em tantas palavras e actos meus, uma idiotice que
não existia, ou um mal que só um espírito deliberadamente inimiga podia ver
neles.
Fiquei
siderado. De repente, graças às confidências de Anna Rosa, vi uma Dida tão
diferente da minha e contudo tão igualmente verdadeira que senti – nessa
altura, mais que nunca – todo o horror da minha descoberta. Uma Dida que falavam
de mim como eu nunca teria de todo imaginado que pudessem falar, inimiga, até,
da minha carne. Todas as recordações da nossa intimidade comum desligadas e
traídas de forma tão indigna que, para s reconhecer, tinha de supercar com
despeito o seu lado ridículo de que antes não me apercebera e seconder uma
vergonha que antes, quando eram secretas, não me parecera que devesse sentir.
Como se à traição, depois de me ter induzido, confidante, a desnudar-me,
escancarasse a porta e me expusesse à chacota de quem quisesse entrar para me
ver assim, nu e sem ter com que me cobrir. E apreciações a respeito da minha
família, e juízos sobre os meus hábitos mais naturais, que nunca teria esperado
dela. Em suma, uma outra Dida; uma Dida verdadeiramente inimiga.
No
entanto, tenho a certeza de que com o seu Gengè ela não fingia; com o seu Gengè
era tal e qual como podia ser para ele, perfeitamente íntegra e sincera.
Depois, fora da vida que podia ter com ele, tornava-se outra: aquela outra que
ou lhe convinha, ou lhe agradava, ou realmente sentia ser para Anna Rosa.
Mas
de que me admirava eu? Não podia eu também deixar-lhe, íntegra, o seu Gengè tal
como ela o forjara e ser outro à minha maneira?
Era
assim comigo, como o era com toda a gente.
Não
devia ter revelado o segredo da minha descoberta a Anna Rosa. Foi ela que me
tentou a fazê-lo, por aquilo que me deu a saber, tão inesperadamente, a
respeito da minha mulher. Nunca teria imaginado que a revelação lhe produziria
no espírito a perturbação que produziu, a ponto de leva-la a cometer a loucuras
que cometeu.
Mas
primeiro falarei da minha visita a Monsenhor, a que ela própria me instigou com
muita insistência, como se fosse coisa que não tolerasse mais demoras.
Sem comentários:
Enviar um comentário