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quinta-feira, 24 de abril de 2014

[Todos os contos de Edgar Allan Poe são, por assim dizer, biográficos. Encontra-se o homem na obra], afirma Charles Baudelaire

Imagem encontrada em http://richmondthenandnow.com/
Algum tempo antes que Balzac descesse ao abismo final lançando as nobres queixas de um herói que tem grandes coisas a fazer, Edgar Allan Poe, que tem mais de um traço em comum com ele, caía atingido por uma morte horrível. A França perdeu um de seus maiores génios e a América um romancista, um crítico, um filósofo que não era feito para ela. Muitas pessoas ignoram aqui a morte de Edgar Allan Poe, muitas outras acreditaram que era um jovem rico, que escrevia pouco, produzindo criações bizarras e terríveis nos lazeres mais risonhos, não conhecendo a vida literária senão por raros e retumbantes sucessos. A realidade foi o contrário.
A família do sr. Poe era uma das mais respeitáveis de Baltimore. Seu avô era quarter-master-general na revolução, e La Fayette tinha-o em alta estima e amizade. A última vez que este foi visitar o país, suplicou à sua viúva que aceitasse os testemunhos de seu reconhecimento pelos serviços que lhe havia prestado o seu marido. O seu bisavô havia casado com uma filha do almirante inglês Mac Bride e, através dele, a família de Poe estava ligada às casas mais ilustres da Inglaterra. O pai de Edgar recebeu uma educação honorável. Tendo-se apaixonado violentamente por uma jovem e bela actriz, fugindo e casando com ela. Para misturar mais intimamente o seu destino ao dela, ele quis também subir ao palco. Mas não tinham, nem um nem outro, o génio do ofício e viviam de uma maneira bastante triste e precária. Ainda assim, a jovem dama saía-se bem com a sua beleza e o público encantado suportava o seu desempenho medíocre. Numa das suas digressões, vieram a Richmond, e foi lá que ambos morreram, com poucas semanas de distância um do outro, ambos pela mesma causa: a fome, a penúria, a miséria.
Abandonavam assim à sorte – sem pão, sem abrigo, sem amigo – um pobre pequeno infeliz que, de resto, a Natureza havia dotado de um feitio encantador. Um rico negociante de Baltimore, o sr. Allan, foi movido pela piedade. E entusiasmou-se com esse menino bonito e, como não tinha filhos, adoptou-o. Edgar Allan Poe foi assim criado num bom ambiente e recebeu uma educação completa. Em 1816, acompanhou os seus pais adoptivos numa viagem que fizera a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Antes de voltar ao seu país, deixaram-no sob os cuidados do doutor Brandsby, que tinha uma importante casa de educação em Stoke-Newington, perto de Londres, onde ele passou cinco anos.
Todos aqueles que reflectiram sobre a própria vida, que frequentemente lançam um olhar para trás a fim de comparar o passado com o presente, sabem que grande parte da adolescência tem influência decisiva no génio de um homem. É então que os objectos lançam profundamente as suas marcas no espírito tenro e fácil; é lá que as cores são vistosas e os sons falam uma língua misteriosa. O carácter, o génio, o estilo de um homem é formado pelas circunstâncias da aparência vulgar da sua primeira juventude. Se todos os homens que ocuparam o cenário do mundo tivessem anotado as suas impressões de infância, que excelente dicionário psicológico possuiríamos! As cores, o perfil do espírito de Edgar Allan Poe contrastam violentamente com o fundo da literatura norte-americana. Os seus compatriotas mal o consideram americano e, no entanto, ele não é inglês. É então de bom alvitre colher de um dos seus contos, um conto pouco conhecido, “William Wilson”, um relato singular da sua vida nessa escola de Stoke-Newington. Todos os contos de Edgar Allan Poe são, por assim dizer, biográficos. Encontra-se o homem na obra. Os personagens e os incidentes são o quadro e o cortinado das suas lembranças.

In «Edgar Allan Poe», de Charles Baudelaire (com tradução de Manuel Dias Soares), Alma Azul, Coimbra/Alcains, Outubro de 2008 (1.ª edição).

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