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Nem vocês
imaginam, que fatigantes sonhos me atormentam, neste levantar de feira, neste
capítulo final da existência, aqui, durante as longas noites monótonas de
Tokushima!... Eu bem quisera, evidentemente, sonhar sonhos alegres, tranquilos
pelo menos; sonhar por exemplo com vocês, vê-los todos jovens e ver-me jovem
como éramos há quarenta e tantos anos, palestrar com vocês, rir com vocês; indo
assim prolongando a visão de uma mocidade sempre em viço, o que seria o melhor
meio de deixar ir laborando sobre mim, despercebida, esta decrepitude que me
esmaga... Eu bem quisera ser feliz em sonhos, sonhar serenidades de lar e doces
conchegos de gente amiga ao pé de mim, já que a realidade da vida não me
beneficiou com este regalo. Ou então, se pedir tanto, mesmo em sonhos, fosse
muito, eu já me contentara em ir sonhando com os meus mortos, com os entes que
amei e já se foram deste mundo; ter a ilusão dos seus vultos, do som das suas vozes,
dos seus carinhos, numa ressurreição fantasmagórica, que atravessasse o meu
cérebro irrequieto durante horas, enquanto o corpo ia dormindo...
*
Mas as
coisas passam-se de modo bem diferente. Eu sonho muitos sonhos, todas as
noites. Mas os meus sonhos, fatigantes, quezilentos, não passam, em regra, de
uma como que reedição, correcta e aumentada, e burlesca e caricatural ainda por
cima, da minha anterior carreira activa, a bordo dos navios e em consulados;
transbordando de peripécias, movimentada de incidentes, complicada de
surpresas. Dir-se-ia que me ficaram de reserva, de sobejo, nervosidades
exaltadas, profissionais, que pedem para exercer-se; e, à falta de ocupação
condigna, neste marasmo de fim de vida, isolada e inútil, explodem em sonhos,
excluindo outros sonhos, atormentando-me sem cessar, em horas em que eu
desejaria algum repouso. Sonho com barcos, de todos os tamanhos e feitios,
enxameados de marujos. Umas vezes, sou eu o comandante destes barcos; outras
vezes, simples oficial ou passageiro. Bagagens, malas, maletas, apoquentam-me.
Excita-me a lufa-lufa das partidas, das chegadas. Surgem coisas imperiosas a
resolver, que eu não consigo levar a bom caminho, embora me multiplique em
esforços inauditos. Troco frases, em português ou em línguas estrangeiras, com
gente que passa ao meu alcance; esta gente é, em regra, brusca, arrogante,
malcriada. Por vezes, é um antigo camarada, dos velhos tempos, que diviso e me
sorri; ou é um alto personagem – ministro de Estado, ou embaixador, ou
almirante, ou general –, em farda rica, que faz a sua aparição... – resulta
talvez de multíplices reminiscências de factos anteriores, quando eu assistia,
em Kobe, a bordo de algum couraçado japonês, às revistas navais da grande
esquadra do império, com o imperador presente, acompanhado de luzida comitiva.
Não raro, os navios transformam-se em palácios, semelhantes a alguns que
ocasionalmente visitei; ou descambam em hotéis, em casarões de quatro andares,
de cinco andares, ou compridos como casernas de regimentos, onde a balbúrdia é
a regra, como aqueles hotéis que abundam nos portos do Extremo Oriente, dos
quais eu, por necessidade, tive, em tempos distantes, a experiência. Conservo
ainda nítida a impressão de sonhos que sofri, há alguns anos, quando doente,
sobre a cama; eu não via senão cordas (cordas,
não cabos, para que o vulgo leigo me
perceba), cordas e velas enfunadas, numa confusão indescritível, cruzando-se em
todos os sentidos e a bailarem diabolicamente em frente dos meus olhos,
cerrados em torpor. Deuses piedosos! Se, no delírio final, que preceder a minha
morte, tenho ainda de virar de bordo uma corveta, que estopada!... E,
concluindo este assunto, devo ainda acrescentar que, após tantos sonhos
tumultuosos, acordo todas as manhãs quebrantado, maldisposto, quase envergonhado
de mim mesmo, da labuta quimérica em que se me vão gastando as energias, sem
que logre colher, de tantos disparates, uma impressão sequer que me console...
In «Meditações», de Wenceslau de
Moraes, Alma Azul, Coimbra/Alcains, Janeiro de 2009 (1.ª edição).
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