Mário de Carvalho – Foto encontrada em http://elsindromechejov.blogspot.pt/
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Começou à entrada do elevador, quando o largo e folgazão
Quintão Malpique meteu a patorra peluda entre as portas metálicas e fez disparar
o sensor, evitando que fechassem. Foi Arnaldo o único entre os dez utilizadores
que não riu quando o fulano veio com a sua grande frase «Ai, ai, quanto mais
fulgêncio me reputo tanto mais sulfúreo me alcandoro», suscitando comentários
do género «Que castiço!», «Grande Malpique!». E olhou-o furibundo, quando ele
lhe deu uma palmada no ombro e, depois, lhe apertou o braço com uma
familiaridade que não estava lembrado de consentir.
Mas a questão não tinha ficado por aí. Foi um daqueles dias
de atabalhoamento dos deuses, lá em cima, quando tropeçam ou se distraem e
começam a cruzar linhas e a encaroçar as tintas. A distância de segurança a que
Arnaldo mantinha Quintão Malpique, devido a uma antipatia fininha proveniente
da incompatibilidade de feitios, costumava ser preservada, não apenas pelos
vidros dos gabinetes, mas pelos seus passos cautelosos que evitavam
aproximar-se quando o outro se repimpava na cafetaria, a dizer graçolas.
Descortinava o leitor um tipo de português largo e inflado,
ovante e intrusivo, propenso à calvície, com sobrancelhas de escovilhão, riso
beiçudo, pelame encaracolado em todo o corpo, amador da piodola e da pirraça,
grosseiro para os mais fracos, airoso para os superiores, em absoluto
impenetrável a noções básicas de decência e decoro? Uma figura digna das Metamorfoses, em que se hibridam o
entranhado lanzudo e o atávico malandrim? Não descortina? Então é porque este
Quintão Malpique era uma raridade e convém, na passagem, examiná-lo mais de
perto como espécime singular.
Se lhe perguntassem por que é que ele se tinha queixado à
polícia, por carta anónima, duma velha que dependurava os cobertores nas
traseiras do prédio, sem que isso afectasse ninguém, e muito menos os
empregados duma empresa que não moravam ali, ele responderia, rindo: «É só p’ra
chatear.» Do mesmo modo, quando telefonava para a Câmara, disfarçando a voz, a
denunciar um vizinho que fazia obras clandestinas numa casa de banho, era «só p’ra
chatear». Também era «só p’ra chatear» o gesto de deixar o elevador encravado
no nono andar para que um casal de idosos, com o seu velho cão, tivesse de se
arrastar pelas escadas.
Comprazia-se, naturalmente, com a incomodidade dos outros.
Uma acção que tivesse como motivação «chatear» parecia-lhe absolutamente
justificada, desde que não fosse ele o chateado. Uma representação popular –
aliás falsa e caluniosa – que atribui o incêndio de Roma a Tibério Nero
Enobarbo, para depois celebrar a catástrofe, a toque de cítara, poderá não
andar longe do feitio de Quintão Malpique, descontando o pendor artístico.
Desde que descobrira a Internet,
aliás tardiamente, tinha sido um alvoroço. Aplicava boa parte das horas de
serviço a escrever comentários anónimos nos blogues alheios e nas páginas que
os admitissem. Apreciava especialmente os jornais e as suas colunas de posts.
Eis uma amostra de uma contribuição de Quintão Malpique para
o debate nacional, que pode ser encontrada facilmente na imprensa electrónica,
a propósito da questão, hoje esquecida, dos apoios ao cinema português:
Esses senhores o que
querem é repimpar-se!!! É só mama!! Banquetes de lagosta, em Nice e em Cannes,
aproveitando os favores do Estado e o dinheiro dos contribuintes. Isto é tudo
sempre no poleiro, a chuchar no orçamento, à custa do Zé Povinho, e a gastar os
nossos ricos carcanhóis com filmalhadas que ninguém percebe nem ninguém vê.
Topam? Deviam era mandá-los todos cavar batatas e elas coser meias, a ver se
ganhavam calos nas mãos e eram úteis ao povo que é quem mais ordena. Tá? Ao
menos o doutor Salazar tinha critério e dav ao povo aquilo que o povo queria.
Os leitores mais advertidos hão-de lembrar-se de um jornal
chamado Corneta do Diabo, escrito por
um tal Palma Cavalão, criação do grande Eça de Queirós: «Ora viva, Sô Maia!».
Pois bem, os bons espíritos encontram-se, como reza o ditado, e não só se
encontram no espaço, mas também no tempo. Quase cento e cinquenta anos depois,
os ecos estrídulos da Corneta do Diabo
ressoam diariamente na Internet, em
piruetas de comentários soezes, chalaças, calúnias, mistificações e
ordinarices, sob o mesmo anonimato, e pela verve de Quintão Malpique e seus
milhentos confrades.
In «A arte de
morrer longe», de Mário de Carvalho, Colecção «O Campo da Palavra», Editorial
Caminho (Grupo Leya), Alfragide, Maio de 2010 (2.ª edição).
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