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quarta-feira, 23 de abril de 2014

«Nunca me senti plenamente feliz», escreveu Wenceslau de Moraes

Imagem encontrada em http://www.man-pai.com/ 
Cedo, muito cedo, me alvoroçou e seduziu o encanto do exotismo. Porquê? Não sei. Penso que, temperamento marcado da tara da morbidez logo ao nascer, não me encontrava bem onde me achava, pedia asas à quimera, para fugir para longe, muito longe... E fugi, e voei, e fui deixando farrapos de alma (porque a alma se rasga e se dá quando se amam as coisas), por todo este mundo exótico fora: – pelo Oceano imenso – águas e céu, pela África selvática, pelo Egipto, por Argel, por Zanzibar, por Aden, por Colombo, por Singapura, por Bangkok, por Saigão, pela China, por Java, por Macassar, por Timor e mais nada... Reservava-me o destino ainda outras emoções: – cheguei ao Japão – Amei-o em transportes de delírio, bebi-o como se bebe um néctar...
Todavia, eu nunca experimentei a sensação plena do gozo, o prazer que domina tudo, triunfante. Eu nunca, no Japão como em parte alguma, me senti plenamente feliz, sem dúvida por incompetências e incongruências dos meus dotes afectivos. O enlevo das coisas acorda sempre no íntimo do meu ser um sofrimento ignoto, a impressão de dor por uma catástrofe sofrida ou por sofrer – sofrida, talvez numa outra vida já vivida; por sofrer, talvez em futuros dias da minha vida actual, talvez numa outra vida que há-de vir; ou terei eu o estranho dom de sofrer, por indução, a dor dos males que ferem outros seres?...
Bem. Foram correndo os anos; foram-se sucedendo as surpresas, as maravilhas; e também os reveses, como, em regra, sucede a toda a gente. O Japão conferia-me ainda o privilégio cruciante de assistir, em curtos intervalos de tempo, a duas agonias, aos gestos convulsivos e aos gemidos pungentes de duas mulheres na força da vida e dos desejos, que morriam a meu lado, tendo pedido à morte que as poupasse...
A minha religião de esteta, a qual já de longe, ia anunciando tendências para me deixar colher dos factos e dos aspectos, principalmente, a noção melancólica da impertinência das coisas, do aniquilamento como lei suprema, a que tudo se submete, transitou então para uma outra crença, a religião da saudade – que é ainda uma religião estética, mas de uma estética retrospectiva, que leva a paixão do belo, do bom, do consolador, pelo que foi e já não é.
O Japão foi o país onde eu mais vivi pelo espírito, onde a minha individualidade pensante mais viu alargarem-se os horizontes do raciocínio e da compreensão, onde as minhas forças emotivas mais pulsaram em presença dos encantos da Natureza e da Arte. Seja pois o Japão o altar deste meu novo culto – a religião da saudade –, o último por certo a que terei de prestar amor e reverência.

In «Meditações», de Wenceslau de Moraes, Alma Azul, Coimbra/Alcains, Janeiro de 2009 (1.ª edição).

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