Mário de Carvalho
– Foto encontrada em ipsilon.publico.pt
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O almoço
foi um desastre, mas Arnaldo não tinha expectativas de que viesse a ser outra
coisa. A mãe aventurara-se a um prato robusto e t8nha, com a colaboração do
polícia, cozinhado um prato confuso. Já ia na letra C do «sítio» de receitas da
Internet, e as amigas, porventura com
alguma perfídia, não a tinham desanimado de experiências anteriores, até lhe
haviam dado conselhos. E sobre comida não mais direi. A escrita não é
competente para falar de sabores. Mais vale uma trincadela que um milhão de palavras.
Sim, eu
sei, há todo um Eça, o grande Eça, as suas favas com arroz, o fiozinho de limão
a errar subtilmente, que quase nos faz senti-lo, as orgias do Hotel Central,
páginas e páginas magníficas. E lá da antiguidade acode o hábil Petrónio, a
descrever-nos o banquete do seu Trimalquião, fazendo-nos água na boca com
aqueles arganazes recheados com mel. E também Galsworthy, com os Forsyte a
abrirem as refeições a poder da sopa de tartaruga fingida, que, antes de
provar, convém averiguar do que é composta, assegurando eu que tartaruga não
entra, para descanso da que figura nesta história. Tolstoi põe as suas
personagens a derrubar garrafas sobre garrafas, a ponto de um mediterrânico
acostumado a livre-trânsito de bebidas se interrogar como seria aquilo possível.
E o que comem e o que bebem – especialmente o que bebem – as figuras de Gógol,
enquanto devoram esturjões inteiros. Emparelham com Pantagruel.
Nenhum
destes autores excelsos se pronunciou sobre a canja a doentes da Figueira da
Foz, o que me dispensa da competição e abre um tranquilizador vazio de
«angústia de influência», para usar a expressão dum crítico americano em vigor.
De resto,
nisto da escrita de romances, que é uma espécie de sociedade por quotas, o
leitor tem a sua parte e eu peço-lhe que tenha a bondade de a aplicar,
recordando-se das vezes em que comeu canja a doentes da Figueira, e de entre
elas a pior. Se conseguir imaginar uma ainda mais desengraçada, terá a canja da
mãe de Arnaldo. Se ainda conseguir prestar-se a imaginá-la uns graus abaixo,
terá a reservada opinião de Arnaldo sobre as virtudes culinárias da mãe e do
seu polícia.
In «A arte de morrer longe», de Mário
de Carvalho, Colecção «O Campo da Palavra», Editorial Caminho (Grupo Leya),
Alfragide, Maio de 2010 (2.ª edição).
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