Mário de Carvalho |
Há
muitos anos, os médicos recomendaram-me muito repouso nas praias frias de
Pollsberry de ares gelados, húmidos e salubres. A doença que então tinha não me
lembra, mas certo é que fiquei dela sarado, e por então bom.
Grande
parte do tempo passava-o eu a olhar para o mar, de riba das falésias muito
altas, todas arenitos e musgos, onde as águas redemoinham, turbilham, e escavam
cavernas caprichosas e inacessíveis. Nos cimos, havia restos de antigas
fortalezas, esboroados, muito cobertos de líquenes e de heras. Aí me quedava.
Convém
dizer que não me tinha naquela exaltação de alma em que os livros falam,
expectativas de catedrais emergentes, navegações perdidas, íntimos discursos
sobre o infinito a propósito de qualquer faísca erradia ou macaréu à solta.
Antes olhava para o mar porque todos os recantos da minha velha estalagem estavam
esquadrinhados, todos os quadros a óleo representando ingénuas cenas de caça ou
naturezas-mortas com frutos sumarentos, inacreditáveis, estavam vistos, e as
conversas dos vagos pescadores ou viajantes que por ali se ficavam eram já há
muito sempre as mesmas. E a paisagem, de charnecas sempre cinzentas,
mostrava-se tão pouco variada que tanto dava caminhar aqui como além.
Nestas
minhas supostas meditações sobre os oceanos, fazia-me companhia o velho Patrik O’Malley,
o último tratador de gaivotas, ao que suponho. Habitava numa furna, que nunca
visitei, não longe da velha coluna derrubada em que eu habitualmente me
sentava, e todos os dias, ao aperceber-me, aproximava-me, dispunha pelo chão os
seus apetrechos e ficava horas, a cachimbar e a trabalhar, gestos repousados,
na sua obra.
O
velho era de poucas falas, o que convinha. Já tinha corrido os mares todos, a
bordo de todos os navios, o que o tornava um pouco filósofo e muito céptico.
Todo o seu pensamento se fundava numa asserção que muitas vezes me lembrava com
a insistência própria dos velhos: a de que as ilhas esplendorosas, em que
abunda a árvore-do-pão e o clima é ameno e a natureza brilhante e perfumada,
são as mandadas pelos deuses mais hediondos e repulsivos e fedorentos e
vingativos.
Dedicava-se
na ocasião o velho ao grande trabalho da sua vida que era a confecção de um
cabo que pudesse dar a volta ao mundo, correndo sobre o Equador. Andava nisto
há anos, reunindo para o efeito todos os trapos velhos, todas as cordas, as
guitas e arames, todas as palhas e fibras que pudesse encontrar. Escondidos em
muitos recantos da costa ou enterrados em covas que só ele conhecia, havia já muitos
metros enrolados deste gigantesco cilício que ele queria oferecer ao mundo.
Nunca
me deu explicações sobre o porquê desta sua lavra. Às minhas discretas
perguntas respondia com um desencorajante «porque faz falta», resmoneando
entredentes, a limitar uma área de conversação em que não estava interessado.
Assim
então nos plantávamos, em grande silêncio, eu a olhar para as águas, ele a
cachimbar e a entretecer, moroso, o seu cabo.
In «A Inaudita Guerra
da Avenida Gago Coutinho (e outras histórias)», de Mário de Carvalho, Colecção
«O Campo da Palavra», Editorial Caminho (Grupo Leya), Lisboa, Janeiro de 2001 (7.ª
edição).
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