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segunda-feira, 21 de abril de 2014

[respondia com um desencorajante «porque faz falta»], excerto de «Pede poena claudo...» (O castigo claudica), de Mário de Carvalho

Mário de Carvalho
Há muitos anos, os médicos recomendaram-me muito repouso nas praias frias de Pollsberry de ares gelados, húmidos e salubres. A doença que então tinha não me lembra, mas certo é que fiquei dela sarado, e por então bom.
Grande parte do tempo passava-o eu a olhar para o mar, de riba das falésias muito altas, todas arenitos e musgos, onde as águas redemoinham, turbilham, e escavam cavernas caprichosas e inacessíveis. Nos cimos, havia restos de antigas fortalezas, esboroados, muito cobertos de líquenes e de heras. Aí me quedava.
Convém dizer que não me tinha naquela exaltação de alma em que os livros falam, expectativas de catedrais emergentes, navegações perdidas, íntimos discursos sobre o infinito a propósito de qualquer faísca erradia ou macaréu à solta. Antes olhava para o mar porque todos os recantos da minha velha estalagem estavam esquadrinhados, todos os quadros a óleo representando ingénuas cenas de caça ou naturezas-mortas com frutos sumarentos, inacreditáveis, estavam vistos, e as conversas dos vagos pescadores ou viajantes que por ali se ficavam eram já há muito sempre as mesmas. E a paisagem, de charnecas sempre cinzentas, mostrava-se tão pouco variada que tanto dava caminhar aqui como além.
Nestas minhas supostas meditações sobre os oceanos, fazia-me companhia o velho Patrik O’Malley, o último tratador de gaivotas, ao que suponho. Habitava numa furna, que nunca visitei, não longe da velha coluna derrubada em que eu habitualmente me sentava, e todos os dias, ao aperceber-me, aproximava-me, dispunha pelo chão os seus apetrechos e ficava horas, a cachimbar e a trabalhar, gestos repousados, na sua obra.
O velho era de poucas falas, o que convinha. Já tinha corrido os mares todos, a bordo de todos os navios, o que o tornava um pouco filósofo e muito céptico. Todo o seu pensamento se fundava numa asserção que muitas vezes me lembrava com a insistência própria dos velhos: a de que as ilhas esplendorosas, em que abunda a árvore-do-pão e o clima é ameno e a natureza brilhante e perfumada, são as mandadas pelos deuses mais hediondos e repulsivos e fedorentos e vingativos.
Dedicava-se na ocasião o velho ao grande trabalho da sua vida que era a confecção de um cabo que pudesse dar a volta ao mundo, correndo sobre o Equador. Andava nisto há anos, reunindo para o efeito todos os trapos velhos, todas as cordas, as guitas e arames, todas as palhas e fibras que pudesse encontrar. Escondidos em muitos recantos da costa ou enterrados em covas que só ele conhecia, havia já muitos metros enrolados deste gigantesco cilício que ele queria oferecer ao mundo.
Nunca me deu explicações sobre o porquê desta sua lavra. Às minhas discretas perguntas respondia com um desencorajante «porque faz falta», resmoneando entredentes, a limitar uma área de conversação em que não estava interessado.
Assim então nos plantávamos, em grande silêncio, eu a olhar para as águas, ele a cachimbar e a entretecer, moroso, o seu cabo.

In «A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho (e outras histórias)», de Mário de Carvalho, Colecção «O Campo da Palavra», Editorial Caminho (Grupo Leya), Lisboa, Janeiro de 2001 (7.ª edição).

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