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Oh, meus amados irmãos do grande mar, se eu, vosso humilde servo, relatasse de facto tudo o que vi na Europa, teria de falar durante horas. As minhas palavras teriam de ser como um ribeiro incessante, fluindo de manhã à noite, e mesmo assim a verdade ainda não ficaria completa; porque a vida do Papalagui é como o oceano, do qual também não descobrimos nem início nem fim. Tem muitas vagas como as grandes águas, revolta-se, agita-se, ri e sonha. Tão impossível como é esvaziar o mar com a concha da nossa mão, assim me é impossível trazer na minha cabeça até vós esse grande volume chamado Europa.
Mas há algo que não me esquecerei de vos dizer: viver na Europa sem os lugares de pseudovida e os muitos papéis é tão impensável como um mar não ter água. Se tirássemos essas coisas ao Papalagui, ele ficaria como o peixe que é atirado para a praia por uma onda, capaz de agitar as barbatanas mas não de nadar e mexer-se como está habituado a fazer.
Os lugares da pseudovida! Não é fácil
descrever-lhes um lugar assim, o tipo de lugar a que o homem branco chama
cinema; descrevê-lo de modo a dar-vos uma imagem clara. Em todas as comunidades
e aldeias, por toda a Europa, existe esse lugar misterioso, um lugar que faz as
crianças sonhar e lhes enche a cabeça com um anseio apaixonado.
O cinema é uma grande cabana,
maior do que a maior cabana de um chefe de Polo, sim, muito maior. Lá dentro está
escuro, mesmo durante o dia, tão escuro que ninguém reconhece o seu vizinho.
Quando entramos ficamos cegos, e quando saímos mais cegos ficamos. As pessoas
entram em bicos de pés, tacteando o caminho ao longo da parede, até se
aproximar uma donzela com um facho de luz na mão, que as conduz a um lugar
ainda desocupado. Lá, os Papalagui sentam-se ao lado uns dos outros sem se
verem; uma sala às escuras cheia de gente silenciosa. Os presentes sentam-se em
tábuas estreitas, e todas as tábuas estão viradas para uma parede.
Da parte inferior da parede
ergue-se um som forte e berrante, como que vindo de uma ravina profunda, e,
quando os nossos olhos se habituam à escuridão, vemos um Papalagui a debater-se
com uma caixa. Bate com as mãos abertas nas numerosas línguas brancas e pretas
que gritam ao ser atingidas, cada uma com a sua voz, o que resulta nos ruídos
selvagens e desordenados de uma briga de aldeia.
Essa barulheira tem de drogar e
enganar os nossos sentidos, para que acreditemos nas coisas que vemos e não
duvidemos da realidade do que acontece. Mesmo à nossa frente, um feixe de luz
atinge a parede como se a lua cheia brilhasse sobre ela, e no clarão aparecem
pessoas, pessoas verdadeiras, com a aparência e as vestes dos Papalagui
normais. Mexem-se, andam, riem e saltam tal como fazem por toda a Europa. É
como a Lua a espelhar-se na lagoa: vemos a Lua, mas na verdade ela não está
ali. O mesmo se passa com estas imagens. As pessoas mexem os lábios e juraríamos
que estão a falar, mas não ouvimos uma sílaba, por muito que esforcemos os
ouvidos: eis como tudo aquilo é horrível. Não ouvimos nada. Deve ser por essa
razão que aquele Papalagui espanca a caixa daquela maneira. Quer dar a impressão
de que não ouvimos as pessoas devido à barulheira que faz. E é por isso que, de
tempos a tempos, aparecem letras no ecrã, letras que mostram o que o Papalagui
disse ou está prestes a dizer.
Mas estas pessoas são sempre
pseudopessoas, não são verdadeiras. Se tentarmos agarrá-las, descobrimos que são
inteiramente feitas de luz e que é impossível tocar-lhes. A única razão para a
sua existência reside no facto de mostrarem ao Papalagui as suas alegrias e
tristezas, as suas loucuras e fraquezas. Deste modo, ele pode ver de perto os
mais belos homens e mulheres. Podem estar em silêncio, mas mesmo assim ele vê-lhes
os movimentos e a luz dos seus olhares. Pode imaginar que o olham e falam com
ele.
In «Papalagui», de Tuiavii
de Tiavéa [este livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii,
chefe da tribo samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich
Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do
editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador
Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).
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