Leonardo da Vinci |
Coimbra, 8 de Novembro
de 1952 – Um convite,
que recusei, para falar de Leonardo da Vinci. É preciso saber resistir às
tentações de Satanás, mormente numa terra onde nunca se soube apreciar
devidamente o alcance dos seus sortilégios. Que poderia eu dizer de
interessante e original sobre uma experiência humana que nunca teve em
Portugal, já não digo aproximação, mas pelo menos compreensão?
A
grandeza de certas figuras é tanto delas como de exegese que se lhes junta.
Ora, se formos a ver o que da nossa vida cultural consta desse esforço
vivificador dos mais arrojados pioneiros do espírito, é uma desolação. E,
necessariamente, quem tente fazê-lo pela primeira vez, na hipótese feliz de ser
capaz disso, nem sequer pode ser entendido. Saber sei eu que Leonardo foi no
palco do mundo um actor sem medida. Que, mesmo entre as demais extraordinárias
presenças do Renascimento, a sua se destaca duma maneira tão singular que causa
calafrios. Que há nele o que quer que seja de irredutível, de atómico, de
subversivo. Mas todos nós aqui somos reaccionários. Histórica e
fisiologicamente condenados às várias contra-reformas do pensamento. Clericais
ou anticlericais, tanto faz – pois ambas as situações são formas degradadas da
fé e do ateísmo –, nada mais fizemos em oitocentos anos de vida mental do que
ralhar uns com os outros no adro das igrejas. E se nos é sensível o génio de
Miguel Ângelo, por ser ainda religioso ou super-religioso – submisso, portanto,
a um sistema onde se respira a ordem estabelecida, embora cada símbolo que a
exprime seja hipertrofiado –, uma personalidade como a de Leonardo não é
compreensível à nossa catolicidade. Na medida em que a sua força calca aos pés
a humildade da Idade Média, as suas convenções e superstições – que nos
governam ainda –, e lança aos quatro ventos do mundo a heresia de se conceder
ao homem o poder de tudo tentar, de tudo realizar, de nada lhe ser defeso,
é-nos impossível deixar de lhe fugir apavorados. Tais veleidades são-nos
vedadas por serem pecados mortais. E arredamo-nos horrorizados do tentador que
pela primeira vez propôs à consciência alarmada do seu tempo o direito a todas
as aventuras da inteligência.
Diante
dum caderno seu, nós que nunca descobrimos nada (paz aos Descobrimentos!), como
poderemos aceitar sem escândalo aquela imaginação exaltada, onde as ideias se
atropelam como as chamas duma fogueira? A própria multiplicidade das invenções,
e o atraso com que vieram a ter realização, nos confunde. Esquecidos de que é
preciso tempo para se esmoer tudo quanto é verdadeiramente novo, ficamos
inibidos de compreender que ali o que verdadeiramente tem significado é o puro jogo
do espírito, no seu afã de criar, de inventar seja o que for – pára-quedas,
tambores automáticos, carros de assalto –, coisas úteis, inúteis, ou até
perniciosas. Uma disponibilidade incansável que passe por cima do que é moral
ou imoral, da noção de pátria, de família ou de qualquer sentimentalismo
limitador.
Leonardo
representa na história da humanidade o primeiro individualismo integral, a
imposição do génio por si só. Das trevas da negação mística do homem, um
sujeito aparece e diz: Eu sei isto, e aquilo, e aqueloutro, faço e aconteço! E
começa a impor as suas afirmações sem uma imprensa por detrás a apoiá-lo, sem
outros capitais senão os do seu talento.
Divino,
agora, não é Deus; é quem seja capaz de pintar A Ceia ou possa escrever o memorando que Leonardo enviou a Ludovico
Sforza. Com a orgulhosa consciência do seu poder intelectual, Prometeu vai
outra vez tentar o impossível. Pela mão da confiança em si mesmo do novo titã,
o esplendor da especulação grega tem finalmente a sua resposta prática. Aos
teóricos do passado, opor-se-ão os realizadores do presente.
Claro
que é precisamente nesse individualismo militante que reside a falência de
Leonardo. Um homem assim tem de ser omnisciente, é obrigado a construir tudo de
raiz. E aí vai ele utilizar tintas do seu fabrico, que se dissolvem umas nas
outras como se quisessem regressar à confusão do Génesis, ou ensaiar técnicas
votadas de antemão ao insucesso.
Mas
até dessa falência, de que se apercebeu, pôde tirar Leonardo conclusões subtis
e fecundas. Certamente por verificar que a solidão moderna que iniciava, embora
criadora, é sempre solidão, a súmula da sua mensagem é de nada propor, a não
ser um naturalismo trágico, de porfiada representação e transposição mecânica
de toda a actividade vivente. A desolada visão antecipada do pragmatismo que
tem hoje o fulgor conhecido: Um avião a voar como os pássaros, um submarino a nadar
como os peixes...
E
culmina aí a nossa perplexidade. Crentes optimistas, é-nos completamente alheio
o primeiro sorriso do cepticismo moderno. Sorriso que tem a mesma finura e
melancolia nos lábios da Gioconda, de
Santa Ana e de S. João Baptista...
E
Leonardo continua diante de nós impenetrável como um mistério. No florido caminho
da bem-aventurança analfabeta em que vivemos, o enigma cruciante de uma outra
Esfinge, ainda mais terrível e dilemática! O impenitente redutor das ideias ao
concreto, a olhar-nos com a ironia irredutível da sua descrença na crença do
homem!
In «Diário» (6.º volume), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).
In «Diário» (6.º volume), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).
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