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Os muitos papéis[1]
também induzem no Papalagui uma espécie de transe. O que quero dizer com
«muitos papéis»? Tentai imaginar uma esteira de tapa, fina, branca e dobrada, dividida ao meio e dobrada de novo,
totalmente coberta de uma escrita apertada em todas as faces; é esse o aspecto
dos muitos papéis, e o Papalagui chama-lhes «jornais».
Dentro desses papéis oculta-se a
sabedoria do Papalagui. Todas as manhãs e todas as tardes, ele tem de enfiar
neles a cabeça para reabastecer, satisfazê-la e certificar-se de que tem muitas
coisas no seu interior, para que ele pense bem, tal como um cavalo corre melhor
quando lhe damos muitas bananas e o seu corpo fica bem cheio. Quando o alii[2] ainda dorme na sua
esteira, já mensageiros percorrem a terra distribuindo os muitos papéis. É a
primeira coisa que ele procura quando afugenta a sonolência. Afunda os olhos
nas coisas ditas pelos muitos papéis e lê. Todos os Papalagui fazem isso, todos
lêem… Lêem o que disseram os grandes chefes e oradores da Europa durante os
seus fonos[3]. Tudo isso é
cuidadosamente anotado em esteiras, mesmo que sejam disparates. Também são
descritas as vestes que envergam e a comida ingerida pelos alii, os nomes dos seus cavalos e se tiverem pensamentos fracos ou
elefantíase (uma doença dos músculos que faz com que algumas partes do corpo
inchem anormalmente).
As coisas que dizem lá soariam
mais ou menos assim na nossa terra: «O pule
nuu[4] de Matautu acordou
esta manhã depois de uma boa noite de sono. Começou o doa comendo o taro que sobrou do dia anterior. Depois
foi pescar e voltou para a sua cabana à tarde. Uma vez lá, deitou-se na esteira
e recitou versículos da Bíblia até ao anoitecer. A sua mulher, Sina, começou
por amamentar o seu bebé, a seguir tomou banho e, no percurso para casa,
encontrou uma linda flor pua que
colocou no cabelo, prosseguindo depois o caminho para casa.» E por aí fora.
Tudo o que acontece ou se passa,
e as coisas que as pessoas fazem ou deixam de fazer, é tornado público: os seus
bons e maus pensamentos, se mataram uma galinha ou um porco, ou se construíram
uma canoa. Nada acontece na terra deles que não seja imediatamente repetido
pelos muitos papéis. O Papalagui chama a isso «estar bem informado». Quer saber
exactamente tudo o que acontece na sua terra. De manhã à noite. Fica zangado
quando algo escapa à sua atenção. Absorve tudo, embora seja referido todo o
tipo de coisas más e assustadoras, coisas que uma mente sã faria melhor em
esquecer rapidamente. Essas cenas em que as pessoas sofrem são precisamente
reproduzidas com mais exactidão e pormenor do que as cenas agradáveis, como se
não fosse melhor e mais importante contar as coisas boas e não as más.
Quando lemos o jornal, não
precisamos de ir a Apolina, Manono ou Savii para saber o que os nossos amigos
estão a fazer, o que pensam e que visitas fizeram. Ficamos sossegados na
esteira e os jornais contam-nos tudo. Isso pode parecer muito fácil e
agradável, mas ainda assim não é a realidade; porque, se encontrarmos o nosso
irmão, e ambos tivermos os jornais metidos na cabeça, não teremos nada novo ou
interessante para contar um ao outro; porque agora as nossas cabeças contêm as
mesmas coisas. Assim, ficamos ambos em silêncio ou repetimos as coisas que o
jornal já nos disse. Será sempre mais importante estar pessoalmente, partilhar
as alegrias da festa e os desgostos do luto do que estes serem-nos contados por
um estranho.
Mas o maior mal que os jornais
operam na nossa mente não reside no facto de relatarem, mas nas suas opiniões:
opiniões de chefes, sobre os chefes das outras terras, e sobre as acções das
outras pessoas e o que lhes acontece. Os jornais tentam moldar todas as cabeças
da mesma forma, e isso é contrário às minhas crenças e pensamentos. Eles querem
que todos partilhem a sua cabeça e pensamentos. E sabem como conseguir isso.
Depois de lermos os jornais da manhã, sabemos tudo o que todos os Papalagui
terão na cabeça à tarde e aquilo em que estarão a pensar.
O jornal é também uma espécie de
máquina, que fabrica diariamente muitos pensamentos, muito mais do que os que
podem ser produzidos por uma cabeça normal. Mas na sua maioria são pensamentos
fracos, falta-lhes orgulho e força. Enchem-nos a cabeça com muito alimento, mas
não a fazem consistente. Mais valia enchermos a cabeça com areia. O Papalagui
enche a sua cabeça até cima com essa comida absurda dos jornais. Mesmo antes de
deitar fora o antigo, já está a ler o seguinte. A sua cabeça é como um pântano
de mangal sufocado no seu próprio lodo, onde não cresce nada fresco nem verde e
se erguem apenas vapores sulfurosos e enxames de mosquitos mordentes zumbem em
círculos por cima de nós.
Os lugares de pseudovida e os
muitos papéis transformaram o Papalagui no que ele é hoje, um ser humano fraco
e perdido, que ama o que é irreal, que já não consegue fazer a distinção entre
fantasia e realidade, que pensa que o reflexo da Lua é a própria Lua e que os
jornais impressos em letra miudinha são a própria vida.
In «Papalagui», de Tuiavii de Tiavéa [este
livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii, chefe da tribo
samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich
Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do
editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador
Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).
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