Imagem retirada de http://www.clubotaku.org
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24 de Abril
– Este era o segundo domingo após o enfarte. Tivemos duas ou três visitas, mas
não as convidei a entrar. O Dr. Kodama não veio vê-lo. O seu estado mantém-se
inalterável.
Toshiko chegou por volta das duas,
muito antes do costume. Ela tem vindo tarde depois do almoço, e fica apenas
algumas horas. Hoje, enquanto estava ali ao lado do pai, que dormia, afirmou: “Pensei
que deviam ter muitas visitas.” Ao mesmo tempo que dizia aquilo, olhava para
mim.
Como não respondo, ela prosseguiu: “Mamã,
não tem compras para fazer? Podia ir apanhar ar, hoje é domingo.”
Teria sido mesmo ideia dela?,
pensei. Talvez tenha sido ele a sugerir aquilo. É claro que podia muito bem
ter-me dito qualquer coisa. Teria preferido que fosse Toshiko a dizê-lo em seu
lugar, ou seria pura e simplesmente ela a tentar confirmar as suas
suspeitas?... Subitamente, vi-o no nosso hotel de Osaka, ansioso à minha espera,
naquele preciso momento. E se ele estivesse
mesmo lá? – pensei, mas recompus-me imediatamente. Afinal de contas, isso era
altamente improvável. Porém, a ideia começou a perseguir-me. No entanto, era
evidente que não tinha tempo de ir a Osaka. Não podia estar tanto tempo fora,
pelo menos até domingo próximo.
Porém, tinha outra ideia em mente,
por isso disse a Toshiko que ia buscar algumas coisas ao mercado de Nishiki. “Estou
de volta daqui a uma hora”, afirmei. Eram três horas quando saí de casa.
Apanhei um táxi e segui logo para a
Rua Nishiki. Primeiro, para justificar a viagem, comprei bolos de glúten de
trigo, coalhada de feijão tostado e alguns legumes. A seguir, percorri o
Teramachi até Sanjo, e parei na papelaria para comprar dez folhas grandes de
papel de arroz e uma folha de cartolina. Mandei cortá-los do tamanho do meu
diário e mandei embrulhar tudo; depois coloquei-os no meu cesto das compras,
por baixo dos legumes. Fui apanhar um táxi à Rua Kawaramachi – mas não posso esquecer-me
de referir que lhe telefonei do mercado.
“Não, não tencionava sair durante
todo o dia”, disse-me ele. Afirmou-o com ar hesitante, como se pensasse que eu
podia estar a sugerir que nos encontrássemos. No entanto, limitámo-nos a
conversar durante alguns minutos.
Cheguei a casa pouco antes das
quatro (tinha estado fora pouco mais de uma hora), escondi o embrulho de papel
de arroz por trás do suporte dos guarda-chuvas e levei o cesto das compras a
Baya, que estava na cozinha. O meu marido ainda parecia estar a dormir, embora
não ressonasse.
O que me tinha incomodado fora aquela
história do meu diário. Por que motivo teria ele surgido com aquilo? Ter-se-ia esquecido,
devido ao seu estado de confusão mental, que não era suposto saber da sua
existência? Ou será que estava a dizer “Penso que não há razão para
continuarmos a fingir”? E quando tentei esquivar-me dizendo-lhe que nunca tive
nenhum diário, será que aquele sorriso estranho queria dizer “Pára de te
fazeres de inocente”? Seja como for, é evidente que ele queria saber se tenho
escrito o meu diário. A seguir vai querer lê-lo. Como já não pode lê-lo nas
minhas costas, começou a sugerir que queria ter a minha autorização. Tenho de
estar pronta para quando ele mo pedir abertamente.
Quanto aos registos até ao dia dezasseis
deste mês, estou disposta a mostrar-lhos quando ele quiser. Mas ele deve saber
que o diário não acaba aí. Dir-lhe-ei: “Como andas a ler o meu diário em
segredo, é escusado continuar a escondê-lo. Podes lê-lo à vontade, embora de
pouco te adiante. Como hás-de ver, acaba no dia dezasseis. Desde então, tenho
estado demasiado ocupada para escrever o diário – embora também não tenha feito
nada que merecesse a pena referir.”
Porém, terei de prová-lo
mostrando-lhe que só existem páginas vazias a partir do dia dezasseis. Com o
meu novo papel de arroz, posso dividir o caderno nesse ponto, acrescentar o
número suficiente de folhas em branco e voltar a uni-lo em dois volumes.
Não dormi a minha sesta, pelo que
fui até lá acima descansar durante cerca de uma hora. Quando voltei para baixo,
às seis e meia, trouxe o diário e pu-lo na gaveta do armário da sala. Toshiko
foi-se embora a seguir ao jantar, às oito. Às dez, mandei a menina Koike subir.
Às onze ouvi passos no jardim.
In «A chave», ficção de Junichirō Tanizaki (tradução da versão inglesa por Maria Augusta Júdice), colecção «Outras estórias», Editorial Teorema, Lisboa, Fevereiro de 2003 (1.ª edição).
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