Gilberto Freyre – Imagem retirada
de http://sotaquesbrasilportugal.blogspot.pt
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Coimbra, 3 de Março de 1943 – Parece não ter remédio o complicado problema da guerra
de gerações. Ainda hoje, ao ler um prefácio de Gilberto Freyre num livro de
crítica de poesia, verifiquei isso mesmo. À camada literária que chegou depois
da sua, chama, nada mais, nada menos, o claro espírito de Casa-Grande & Senzala «numa espécie de sexta coluna sinistra!»
Ora, não é impensadamente, nem por
caturrice lamentável de velho, que uma tal acusação sai da pena do penetrante
ensaísta brasileiro. Nem o autor de Nordeste
tem cem anos, nem coisas duma gravidade assim se dizem por desfastio. À
violência da expressão há-de por força corresponder, na ideia de quem a
emprega, uma realidade dolorosa. Deve mesmo existir no escritor, consciente ou inconscientemente,
o propósito de estigmatizar com palavras de fogo o que há de irremediável nessa
desgraça que vem desde que o mundo é mundo.
«Sexta coluna sinistra», e eu estou
a ver, em Portugal, Castilho ter insónias por causa dela, Camilo escrever
romances realistas por causa dela, e o próprio Herculano imunizar-se
prudentemente contra ela. Estou a ver, por toda a parte e em todos os tempos,
de um lado, uns pacatos senhores esfalfados de prosa e verso, aterrorizados
diante da obra realizada, com a ideia de que tudo aquilo vai ser atirado ao ar
por meia dúzia de bombas de pataco; do outro, uns mocinhos imberbes, com toda
uma vida diante para se convencerem que isto de escrever um autêntico livro é
tão difícil como a celebrada passagem do camelo pelo rabo da agulha, – sem
ideias concretas, sem a mão assente, sem o mistério do ofício sequer
pressentido –, importantes, infalíveis, a assobiar aos velhotes como quem
assobia a um cão.
Vista de fora, a tragédia chega a
fazer rir. Mas, olhada de dentro, talvez não haja nada de mais doloroso e
triste. Que seja necessário ou fatal semelhante duelo na história das artes, é
realmente de meter pena. Porque, embora contínuo, real e objectivamente
verificável, não parece que o fenómeno tenha uma razão de ser transcendente,
apoiada em fundamentos lógicos. Se até certo ponto se compreende que Castilho
fosse apupado por um Antero, já não era de maneira nenhuma razoável que Camilo
recebesse as ironias de um Eça.
É evidente que no espólio de
qualquer época há sempre muito que condenar, corrigir, deitar fora, e até
combater. Mas, na pressa com que vem, a rapaziada nova esquece que igual
auto-de-fé há-de queimar no futuro parte da produção dos inquisidores de agora.
Bem sabemos que no início de uma jornada, de mais a mais árdua como a sua
criação, todo o entusiasmo é pouco e toda a cegueira é pouca. Mas por que
hão-de ser sempre o entusiasmo e a cegueira contra os que a lei do tempo
encaneceu? Boa ou má, a obra que realizaram foi um esforço e um exemplo. Na
maioria dos casos, foi nela, até, que os mesmos atacantes mataram a primeira
sede. De maneira que não se chega a compreender a causa de tanta irreverência e
muitas vezes tanto ódio. Embora a imagem seja um bocado crua, depois de uma
meditação serena sobre certas injustiças, é-se levado a pensar que há na base
dessa feroz hostilidade aos velhos qualquer coisa de semelhante ao que acontece
com aqueles bichos que, apenas fecundados pelo companheiro, se apressam a
matá-lo e a devorá-lo. É como se cada geração, mal acabasse de sorver da
anterior todo o sumo vital, indignada por não encontrar lá mais com que nutrir
a insaciedade, passasse a odiar o favo que chupou, onde agora somente vê cera
morta.
Por outro lado, é um fenómeno quase
miraculoso encontrar no passado duma literatura um autor idoso com autêntica
compreensão pela seiva naturalmente um pouco irresponsável de qualquer
principiante. Parece que a idade, a cultura, a maturidade, o incapacitam de se
lembrar sequer dos bons tempos em que também ele era a mesma ânsia e
obstinação. A compostura clássica que necessariamente atingiu impossibilita-o
de ver um outro futuro clássico no jovem e desconexo companheiro. Uma obra é
uma experiência, muito dolorosa e muito profunda, tornada expressão. E nada
mais difícil de conseguir do que o justo equilíbrio entre o que se quer dizer e
o que se diz. Por isso, quando ao cabo do caminho, e com a esquadria das
emoções aprumada, um artista realizado olha um moço só a emparedar seixos
toscos, como poderá entendê-lo?
Há ainda a mensagem de cada um.
Independentemente da limpidez formal, que, a seu modo, todo o criador consegue
mais cedo ou mais tarde, temos de considerar também os valores que cada época
traz, e de que o artista é, por condição, porta-bandeira. Anteontem amava-se
romanticamente; hoje, existencialmente; amanhã... E assim por diante. A
ubiquidade, porém, pertence a Deus Nosso Senhor. É quase uma impossibilidade
orgânica, quando se lutou trinta ou quarenta anos por uma verdade, aceitar de
mão beijada que alguém venha dizer-nos que a verdade verdadeira é a novíssima,
a que esse alguém traz no bolso. As ideias gerais de qualquer período são, como
coisa em si, em tudo respeitáveis e legítimas. São as ideias de então, e nada
autoriza a dizer em absoluto que o pensamento do século XVII superava o do
século XVII, ou vice-versa. Como já se usaram saias de balão, usam-se agora
outras modas. Ora as saias de balão, em relação ao tempo respectivo, eram
perfeitamente correctas e de bom gosto. Mas basta a gente não ver cada coisa
integrada no clima que a motivou, para que a sua aparência se torne ridícula e
detestável. E por isso tão horrível é para uma senhora que usa saia rodada uma
saia travadinha, como o contrário. É evidente que semelhantes bizantinices nada
dizem a uma dama da Renascença, imunizada como está do contingente pela
consumação dos anos. Mas poderá quem respira ainda sublimar-se a ponto de
perder o pé na vida? Certo que não. Todos nós temos visto homens de noventa
anos morrer aos vivas a determinada Patuleia que os faz vibrar. A dita Patuleia
já no cisco da História, e eles ainda com aquele sonho no coração!
E resta finalmente a malfadada
meretriz, às graças da qual poucos escapam: – a vaidade. A exacta glória é a
póstuma, a que nenhum dente rói, e que só desce sobre um nome depois da
ressurreição intemporal do seu possuidor. Todos sabemos que a imortalidade do
poeta lhe nasce das cinzas. Mas o artista enquanto vive é homem. Rege-o tanto
uma lei de cima como uma lei de baixo. E por isso, pela transitória fama entre
meia dúzia de condicionados contemporâneos, é capaz de matar um irmão. Velhos e
novos aprestam nesta triste luta as mesmas armas e as mesmas unhas. Os velhos
querem guardar os loiros; os novos querem tirar-lhos das mãos. E sem haver a
mais pequena esperança de paz entre as duas forças. É da própria natureza dos contendores
que nenhum ceda. A sofreguidão é tanto da fisiologia senil, como da infantil...
In «Diário» (2.º volume), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1977 (4.ª edição).
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