Miguel Torga – Imagem retirada de dubleudansmesnuages.com
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Coimbra, 26 de Janeiro de 1942 – Depois da Ilíada, a Odisseia. De vez em quando é preciso retemperar a coragem nestes avós da poesia. E não há dúvida nenhuma que o episódio da Nausícaa é perfeito. O bom do Camões ou não teve olhos para ver isto ou então enganou-se redondamente, cuidando que era possível meter no jardim da pureza grega a pornografia lusitana. Mas o que sobretudo me assombra nestes helenos é o riso amável com que sabiam encarar a vida, mesmo quando estavam diante de uma tragédia de faca e alguidar. Só eles tiveram a ideia funda e satânica de mostrar ao leitor, simultaneamente, os bonecos e quem lhes puxa pelos cordelinhos. Só eles souberam fazer na literatura o que depois os romanos fizeram na vida, com o escravo ao lado do César, no carro de triunfo, a segredar-lhe no intervalo das aclamações o memento homo da sua condição. Terranizá-la, numa palavra. O herói, por maior que se apresente aos nossos olhos, anda sempre acompanhado dum rabo-leva, que o reduz ao pouco que todos os homens são. Os próprios deuses entram nesta comezinha regra de moral. E tanto no Olimpo como em Atenas, por detrás de cada façanha, está um mísero e mesquinho calcanhar. Heitor fala; mas, antes de ele abrir a boca, tinha falado Neptuno. Ulisses peleja e vence; simplesmente, antes de a sua espada triunfar, estava-lhe já assegurada a vitória. Isto nos homens. Nos Deuses, porque vivem no céu, a coisa é um pouco mais discreta. Mas, ao cabo e ao resto, nem o velho Júpiter é senhor de si. A carne é fraca, Vénus é bonita... Enfim, uma miséria! Ora não há nada mais salutar na educação dum povo do que este contraponto, que engloba na mesma solfa a heroização e a deseroização. Estabelece-se o equilíbrio entre a maré alta e a maré baixa, e creio que é na oscilação entre estes dois pólos que consiste a força do mar.
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