Junichirō Tanizaki – Foto retirada
de http://rateyourmusic.com
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15 de Abril
– Noto que o meu cérebro está num processo de deterioração constante. Desde
Janeiro, quando me decidi a satisfazer Ikuko, comecei a perder interesse em
tudo. A minha capacidade de pensar está tão reduzida, que não consigo pensar
durante mais de cinco minutos. Tenho a cabeça cheia de fantasias sexuais.
Durante vários anos fui um leitor voraz, fossem quais fossem as circunstâncias,
mas agora passo o dia inteiro sem ler uma única palavra. E no entanto, por
hábito, continuo a sentar-me à secretária. Fico com os olhos fixos num livro,
mas não leio nada. É certo que sofro de uma perturbação visual que dificulta
extremamente a leitura. Vejo as letras a dobrar, e tenho de ler a mesma linha
várias vezes seguidas.
Agora, por fim, sou vítima de um
encantamento que me transformou num animal que vive de noite, um animal que
apenas serve para acasalar. De dia, quando estou fechado no escritório,
sinto-me intoleravelmente cansado e aborrecido; ao mesmo tempo, sou presa de
uma ansiedade terrível. Ir dar um passeio contribui para distrair um pouco, mas
as tonturas fazem-me ter dificuldade em andar. Sinto-me como se estivesse quase
a cair para trás. Mesmo que saia à rua, não me aventuro a ir muito longe de
casa. Apoiado na bengala, vagueio por Hyakumamben, por Kuodani, pelo Templo de
Eikan; afasto-me das ruas movimentadas, e passo a maior parte do tempo a
descansar nos bancos. Tenho as pernas tão fracas, que fico logo exausto.
Hoje, quando voltei, Ikuko estava a
conversar com a menina Kawai, a costureira, na sala de estar. Ia parar para
tomar uma chávena de chá, mas ela exclamou: “Não entres agora!” Espreitei na
mesma, e via-a a experimentar um vestido de corte estrangeiro. Ela opôs-se à
minha presença, e retirei-me para o escritório. Mais tarde, ouvi-a dizer em voz
alta que ia sair um pouco. Parecia estar a sair com a menina Kawai.
Olhei pela janela do segundo andar,
e vi as duas a andar juntas. Era a primeira vez que via Ikuko de roupas
ocidentais. Não há dúvida que era para isto que se preparava quando começou a
usar luvas e brincos com quimono. Mas, para dizer a verdade, o seu vestido novo
não lhe fica lá muito bem. Parece que não condiz com ela. Devia ter pensado
que, em comparação com a menina Kawai, que é lisa e disforme, Ikuko devia ficar
atraente com essas roupas. Mas a menina Kawai já está habituada a elas, e
usa-as com um ar descontraído. Os brincos e as luvas de renda da minha mulher
não lhe ficavam tão bem como antes. Nessa altura, pareceram-me exóticos, mas
hoje, com o vestido estrangeiro, pareceram-me artificiais e mal combinados.
Havia uma falta de harmonia entre as roupas, os acessórios e a sua figura.
Hoje em dia, passou a ser popular
usar coisas japonesas à ocidental, mas Ikuko faz exactamente o contrário. Vê-se
que foi feita para usar quimono. Os seus ombros são demasiado inclinados para
as roupas ocidentais. E o pior é que ela tem as pernas arqueadas – magras e
suficientemente elegantes, mas excessivamente curvas entre o joelho e o
tornozelo. Com meias de seda, os seus tornozelos ficam muito largos. Além
disso, o seu porte – a sua maneira de andar, os movimentos dos ombros e do
tronco, a maneira como dispõe as mãos, a inclinação da cabeça – tudo nela é
flexível e feminino ao estilo tradicional japonês, um estilo que fica bem com o
quimono.
Mesmo assim, senti uma volúpia
estranha na sua figura esguia e flexível, na curva desajeitada das suas pernas.
Isto é uma coisa que me era ocultada quando ela usava quimono. Enquanto a via
caminhar, admirei a beleza distorcida das suas pernas por baixo da saia de tweed. E pensei na noite de hoje.
In «A
chave», ficção de Junichirō Tanizaki (tradução da versão inglesa por Maria
Augusta Júdice), colecção «Outras estórias»,
Editorial Teorema, Lisboa, Fevereiro de 2003 (1.ª edição).
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