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Coimbra, 11 de Novembro de 1942 – Quando me ponho a pensar no homem que depois de
Cervantes e de Camões nos levou à Europa com mais firmeza e sentido, ocorre-me
sempre o nome cada vez mais novo de Unamuno. É claro que não esqueço o Costa do
Ideário español, o Antero das Causas da decadência dos povos peninsulares,
e o Oliveira Martins da História da
Civilização Ibérica. Mas volto ao de Bilbau. É que, para mim, o grande erro
de quantos, depois de terem a consciência do nosso caso, quiseram fazer da
Ibéria uma terra da Europa, foi tentarem semear neste tórrido chão peninsular
frias ideias doutros paralelos. Só o comentador de D. Quixote (e Ganivet, embora com menos afinco) teve o génio de
entender o problema a fundo, e de ver em que justa medida a esponja, sem perder
o justo orgulho da origem, poderia sorver o orvalho doutra cultura. Explicar ao
mundo a natureza da nossa língua, o caminho da nossa história, a terrosidade do
nosso chão, a seriedade da nossa paisagem, a intimidade da nossa literatura, a
grandeza dos nossos santos, a ferocidade dos nossos heróis, a humanidade dos
nossos ladrões e o ingénuo charlatanismo dos nossos políticos, é certamente a
maneira mais honrada de conversar no soalheiro universal, e de motivar a
compreensão dos ouvidos alheios. As ideias são como as plantas: têm o seu clima
e a sua terra. Por mais que se diga, o eucalipto será sempre exótico na
paisagem portuguesa. Exprimir agonicamente o drama dum específico temperamento
religioso, é, de facto, levar à Dinamarca de Kierkegaard a mensagem de uma
certa inquietação metafísica, e receber em troca a mensagem doutra inquietação
igualmente patética. Falar do sentimento trágico da vida, perscrutando a nossa
alma mística e solitária, é dizer a Pascal quem somos, e ouvir de Pascal quem
é. Ora, é numa fraternidade assim de confissões e confidências que a cultura se
faz. Quer dizer: só depois de bem avaliar as suas características particulares
e de as caldear a seguir no grande lume universal, pode um qualquer ser ao
mesmo tempo cidadão de Trás-os-Montes e cidadão do mundo. Foi o que Unamuno se
esforçou por nos ensinar e ensinar à Europa. Recusando-se, activamente, a africanizar
a Ibéria, ou americanizá-la, ou a europeizá-la pura e simplesmente, tentando,
pelo contrário, arrancar da nossa intra-história a nossa verdadeira
significação continental, conseguiu esta maravilha: que a Europa tivesse
consciência de nós, e nós dela. E é ver como apareceram logo os Cassous do lado
de lá e os Ortegas do lado de cá. Dizia-me ontem um amigo francês esta
tristeza: – de Camilo em diante, parece que os escritores portugueses têm as
raízes fora de Portugal! E é verdade. Por desgraça, somos todos, em mísero,
Anatoles, Prousts, Morgans, Valérys, ou outros igualmente grandes e igualmente
alheios. Daqui, deste avaro torrão, e com a consciência profunda dele, é que
ninguém quer ser. E aí temos o resultado: não existir europeu que se interesse
seriamente pela nossa literatura contemporânea. – Para quê? – perguntava-me
ironicamente o mesmo sujeito. E dava-me a resposta: – Bem vê, temos lá os
originais...
Mas ninguém é capaz de fazer
compreender estas singelas coisas a uns pobres de Cristo que para aí fazem
prosa e verso. Enfrenizam-se na asneira, e debilitam ainda mais as virtudes
particulares que, pelo que diz respeito propriamente a Portugal, embora
brandas, são as que temos para nos salvar ou perder.
Não. Tudo está em aprender e seguir
a grande lição do velho mocho de Salamanca. Fincar primeiro, amorosa e
obstinadamente, os pés na terra esbraseada da Ibéria; e, com ela na
sensibilidade e no entendimento, olhar então, num movimento de humana e natural
curiosidade, para o que se passa do outro lado do muro.
In «Diário» (2.º volume), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1977 (4.ª edição).
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