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Naquela noite, na praia de areia
fina, onde os avieiros pelo Inverno vêm puxar as redes, só se ouvia o marulhar
brando do Tejo a acariciá-la.
Estava noite de luar. Um luar brando
de Outono que vestia as coisas de penumbra triste. Piscavam luzes na outra margem,
dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num concílio de estrelas. Eram
constelações de vidas, todas iguais vistas de longe.
A luz que iluminava o senhor não
brilhava mais do que a outra que alumiava o servo. Ali não havia casebres, nem
palácios. Todas eram irmãs, como ar; estrelas da Estrada de Santiago que
polvilhavam de oiro o azul-negro.
Dali os seus anseios partiam para
longas viagens, embalados pela dolência das marés, com velas enfunadas pelo
sopro da imaginação de cada qual. Até ele vinha o passado, qual história
estranha dita pelo Tejo, numa voz meiga e doce. E o passado era triste - mais
triste que o badalar de um chocalho vindo de longe.
Ambições naufragadas, restos de
alegrias e desditas, de que tinha vaga recordação. O presente era amargo, tão
doloroso como o passado.
Mas ali, naquele silêncio, guardava
sonhos de criança, como se nunca tivesse entrado na vida e ainda a julgasse uma
floresta de frutos de oiro.
Era ali, sentado na praia, de corpo
alquebrado pelas soalheiras e pelo trabalho, que vinha fazer a sua viagem de
promissão. Na dolência vaga da noite acompanhava-o, às vezes, o trapejar de
velas no virar dos bordos.
E ficava-se a olhar as fragatas,
embarcando nelas os seus anseios sempre jovens.
A carreira daqueles barcos era curta
e não chegava ao mar. Descarregavam em qualquer porto das margens e voltavam de
novo, rio acima, em viagem decorada. E todos os dias e todas as noites,
enquanto houvesse fretes, até o tempo lhes consumir as carcaças e serem
vendidos para encalhar nos valados.
Barcos irmãos da sua vida de
alugado.
Também já andara por esse mundo,
embarcado como mercadoria. Encontrara homens de outras raças, raças que afinal
eram Irmãs da sua. Nunca julgara isso. Sabia agora que o Agostinho Serra
pertencia a outra raça e que a sua era a mesma dos negros descarregadores dos
molhes dos portos por onde andara. Irmão dos negros que colhiam café e pilavam
milho, por essas terras distantes de oiro e febres.
Fora e voltara - sempre passageiro
de terceira.
Estava agora ali, trabalharia amanhã
no fundo de uma mina a viver em trevas - a sua vida assemelhava-se a uma mina
em trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque sabia haver lá em cima
outra vida com luz e ar. Vivia na sub-humanidade - morava na cave de um prédio
de muitos andares, onde, nos altos, havia lugar para ele e para os
companheiros.
O canavial, ali perto, falou à
noite. E a noite não lhe respondeu. Só as águas do Tejo contavam histórias
estranhas de dramas seus.
Vinha aí a maré alta. Ele
desconhecia ainda que a vida dos homens é um rio com marés, um rio com fluxos e
refluxos que um dia o havia de trazer para a luz. E as águas não se aquietariam
nunca, porque então não seriam de rio, mas de charco. A vida nunca é charco.
Rio aparentemente igual e sempre diferente.
Cruzou as mãos por detrás da nuca e
assim ficou longo tempo, estendido no areal.
Os rapazes não tinham vindo naquela
noite. Não se ouviam os seus brados, nem as suas gargalhadas. Quando eles
estavam, via-se moço também. E parecia-lhe que andava com eles a correr e a
saltar, esquecido de tudo. Ria-se dos seus ditos, seguia-lhes as brincadeiras.
Mas noites havia de tristeza mais
funda. Então, não ficava a esquecer-se de si. Seguia pelo carril do valado e
andava sem destino. Ora a passo lento, ora em marcha leve. Os pensamentos
acompanhavam-no de mãos dadas.
Aquela era uma dessas noites. Os
rapazes tinham procurado outro rumo e pudera ficar só. Silêncio e ele.
E ambos falavam como se se
entendessem, como amigos velhos encontrados ao fim de caminhar diferente. O
silêncio dizia-lhe palavras que mais ninguém lhe poderia dizer naquela emposta.
Falava pelos homens que ainda se não haviam encontrado.
Estavam ali, lado a lado,
confessando anseios e desditas, sem erguer a voz. As palavras pareciam rezadas,
não fosse alguém traí-las. A noite escutava-os, mas sabia calar os segredos do
ceifeiro e do silêncio. Nem as luzes da outra margem, nem as estrelas,
conheciam a conversa que ciciavam ao ouvido um do outro.
Dois vultos saíram da negridão e
vinham pelo valado. O ceifeiro não os viu, nem ouviu - continuava entregue ao
futuro e, embora o seu companheiro se calasse, ficou, como um louco, a falar
sozinho. Quando voltou a si, os vultos já estavam sentados na areia; o lume de
um cigarro brilhava na praia. Tinham as cabeças voltadas para ele e viu-lhes os
olhos vivos e iluminados de interrogações. Talvez alucinação, mas bem os sentia
penetrarem-lhe o cérebro, agora inundado pela sua presença.
Voltou-se para o outro lado, mas
aqueles olhares vogavam no Tejo, como a tremulina da luz do luar, mas lucilavam
mais, porque eram interrogadores. E subiram depois pela noite, piscando na
outra margem; aqui, isolados num casal, mais adiante, na mancha dos luzeiros de
lugarejos e vilas.
Sentiu vontade de se erguer e tomar
o carril, caminhando sem destino, como quando os rapazes vinham e precisava
isolar-se. Mas chegara primeiro e o corpo pedia-lhe repouso. Cerrou os olhos e
o olhar dos outros brilhou mais dentro do seu.
Se não havia onde fainar ou nas
horas de comer, os dois encontravam sempre motivo de conversa - diálogo igual,
mas novo a cada hora. Sabiam de cor os projectos de há tanto sonhados.
Trabalhavam na mira de os realizar - talvez no ano próximo. Tiravam à barriga o
escasso que ganhavam, porque só assim poderiam partir.
Aquela ideia avassalara-os,
dominando-lhes a vida. Andavam sempre juntos, como se o sonho estivesse
dividido pelos dois e só assim pudesse ser repetido.
Devoravam as horas a falar dele,
antevendo ambientes que o João da Loja lhes criara quando contava, aos serões,
as suas aventuras por outras terras. Aquele homem, de quem se diziam os maiores
crimes, tornara-se no alvo dos seus desígnios e na rota do seu futuro. Os dois
companheiros punham-se sempre mais perto a escutá-lo; de quando em quando,
trocavam olhares entre si, porque o sonho era de ambos e o desejo de abalar
dominava-os a todo o momento.
Aqui nunca mais passariam da mesma
piolheira. Trabalhar de dia para comer de noite... e mal. Condenados a uma
pena, terem porta por onde se via a liberdade e ficarem entre grades à espera
da morte.
- Isso é que não!... -concordavam
ambos. Não queriam fortuna - se viesse, melhor -, mas granjear trabalho, pão
certo e alguma coisa para a velhice; quando os anos pesam, não há patrão que
conheça o servo.
Naquela noite, tinham vindo até à
praia, trocando vagas palavras, mais pensativos do que palradores. As quatro
paredes lá da terra não as podiam vender, pois as mães precisavam de telha;
também eles quando regressassem encontrariam abrigo. Já ia em cinco anos que
aquela ideia os tomara: desde então, nunca se desprendera deles.
Agora tornara-se parte integrante do
seu corpo - como se aquele rumo lhes fosse marcado no berço por fatalismo.
Nunca lhes dera para se prenderem a um rancho e virem à Lezíria fazer uma
temporada larga. Os outros voltavam mirradinhos de febres, a caminho da botica
ou do bruxo, e aquela marca nunca mais passava.
Eles esgaravatavam por todos os
lados e sempre conseguiam fugir a tais contratos. Neste ano tudo correra pior e
não podiam ficar de braços cruzados, metendo a mão no saco das economias para
tirar, em vez de lhe juntarem alguns cobres, mesmo poucos.
Suplício constante, aquela miragem
de partir - suplício e esperança das horas amargas.
O rio fora-os atraindo como a
estrada da sua evasão. Tinham caminhado para ali, sem o ouvir, mas sentindo-o
chamar. Ficavam agora a dois passos da sua carreira, como se em breve fundeasse
o barco que os levaria para as terras do João da Loja.
Ali era o cais de embarque e mais
outro companheiro esperava também o momento de abalar. Não tinham malas, nem
sacos. Mas partiriam com os anseios, e isso bastava aos emigrantes.
As estrelas no céu prometiam-lhes
boa viagem. E interrogavam-se, mudos.
Reviam todo o sonho acalentado
durante cinco anos. Imaginavam as cidades e os campos da nova pátria, onde
iriam trabalhar - trabalhar em quê?...
Em tudo o que braços humanos
pudessem pegar. Não havia melindres na escolha, nem hesitações. Começariam
outra vida, mais dura talvez, mas mãe. Sorria-lhes a casa onde à noite
voltavam, felizes da jorna, embora quebrados de fadigas. E os carinhos das
companheiras, mulheres estranhas que os seduziam, acalentavam-lhes o corpo e
davam-lhes ímpetos para lutar. O trabalho não os arrefentava - nunca se tinham
furtado a dar o seu esforço.
Contudo, queriam pão certo - queriam
ser homens. Tudo se vestia de cores novas para os receber e acarinhar: as
cidades e os campos, as casas entre flores e as companheiras.
Vida de trabalho, sim, mas vida de
homem.
Falta pouco para embarcar, o navio
não tarda. Não lho disseram; eles porém adivinhavam-no, pois o rio agita
mansamente as águas para embalar o barco.
O companheiro que espera ainda não
deu palavra e parece triste. Talvez pense na mulher e nos filhos. Razão tiveram
eles para nunca se comprometerem. Depois, sim, quando voltassem...
Se o outro ceifeiro não estivesse
para ali tão alheado, iriam perguntar-lhe quais as razões do seu
acabrunhamento. Emprestariam ainda a sua fé àquele companheiro abatido e
silencioso.
- Eh, camarada!... - disse um deles.
O outro não se moveu. Olharam-se e
ficaram a ouvir os seus sonhos.
- Camarada!... - gritou mais alto.
O brado encheu a noite. O ceifeiro
rebelde continuou estendido na areia; por fim voltou a cabeça, contrariado.
- Vossemecê sabe onde vai ter esta
água"!
A resposta tardou. Quando veio, a
voz soou-lhes frouxa ou dorida.
- Vai por aí abaixo...
Logo se esqueceu de que o tinham
interrogado. Os rapazes não vieram ainda jogar ao «primeiro da bela mula» e
prefere ficar só. Porque viriam aqueles dois companheiros despertá-lo agora-
Não lhe agradava moer o tempo em conversas para entreter. Falariam do trabalho
e de mulheres, das suas terras e dos seus amigos. Conversas de quem nada tem
para dizer e procura palavras fiadas.
- O camarada parece que anda a modos
doente... Silêncio.
Um deles chegou-se mais ao ceifeiro
rebelde, quase a tocar-lhe:
- Alguma sezãozita por aí a minar...
- Na!...
A cara do gaibéu agradou-lhe. Era
magra e o olhar não o feria.
E continuou, erguendo o busto e
fixando-se nos cotovelos:
- Já tenho o coirão curtido.
- Dos anos daqui!...
- Pois! Agora... só alguma para
cavalo é que cá entra.
- Ah!... vossemecê é cá do sítio?
- Não fui parido na borda de nenhuma
aberta, ande lá. Sou daqui perto, nem quase me lembro donde. De Aldeia
Galega!...
- Não conheço - interrompeu o outro
gaibéu.
- É para riba?... - interrogou o
outro.
- Na!...
E indicou para o sul num movimento
de cabeça.
- Fica ali no mar da Palha.
Os gaibéus quedaram-se contrafeitos,
sem perceber e sem perguntar. E volveram os olhos para aquele lado. Um deles inclinou-se
para trás, apoiando-se também aos cotovelos.
- Vossemecê sabe onde é que isto vai
ter?... E apontou o rio, a cobrir a praia aos poucos.
- Isso nem se sabe, homem.
- Ao fim do mundo...
- E o mundo é grande...
- Longe?!...
Estavam no porto à espera do barco
que os levaria na viagem para a liberdade. Só sabiam que iam partir com mais um
companheiro. Assim seria melhor, pois nascera ali perto e podia dizer-lhes tudo
o que ansiavam conhecer.
- Ao fim do mundo - respondeu o
ceifeiro rebelde.
Os gaibéus entreolharam-se confusos.
Não se haviam enganado, ainda bem. Daquela praia poderiam abalar para as terras
de além, donde o João da Loja voltara rico.
- Contou-me um marinheiro quando
embarquei. Esta água Vem vai a Lisboa e depois mar fora. E os mares são muitos
e é só um.
In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.
In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.
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