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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

PORTO DE TODO O MUNDO, excerto do romance Gaibéus, de Alves Redol

Foto encontrada em http://leituras-cruzadas.blogspot.pt/
Naquela noite, na praia de areia fina, onde os avieiros pelo Inverno vêm puxar as redes, só se ouvia o marulhar brando do Tejo a acariciá-la.
Estava noite de luar. Um luar brando de Outono que vestia as coisas de penumbra triste. Piscavam luzes na outra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num concílio de estrelas. Eram constelações de vidas, todas iguais vistas de longe.
A luz que iluminava o senhor não brilhava mais do que a outra que alumiava o servo. Ali não havia casebres, nem palácios. Todas eram irmãs, como ar; estrelas da Estrada de Santiago que polvilhavam de oiro o azul-negro.
Dali os seus anseios partiam para longas viagens, embalados pela dolência das marés, com velas enfunadas pelo sopro da imaginação de cada qual. Até ele vinha o passado, qual história estranha dita pelo Tejo, numa voz meiga e doce. E o passado era triste - mais triste que o badalar de um chocalho vindo de longe.
Ambições naufragadas, restos de alegrias e desditas, de que tinha vaga recordação. O presente era amargo, tão doloroso como o passado.
Mas ali, naquele silêncio, guardava sonhos de criança, como se nunca tivesse entrado na vida e ainda a julgasse uma floresta de frutos de oiro.
Era ali, sentado na praia, de corpo alquebrado pelas soalheiras e pelo trabalho, que vinha fazer a sua viagem de promissão. Na dolência vaga da noite acompanhava-o, às vezes, o trapejar de velas no virar dos bordos.
E ficava-se a olhar as fragatas, embarcando nelas os seus anseios sempre jovens.
A carreira daqueles barcos era curta e não chegava ao mar. Descarregavam em qualquer porto das margens e voltavam de novo, rio acima, em viagem decorada. E todos os dias e todas as noites, enquanto houvesse fretes, até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendidos para encalhar nos valados.
Barcos irmãos da sua vida de alugado.
Também já andara por esse mundo, embarcado como mercadoria. Encontrara homens de outras raças, raças que afinal eram Irmãs da sua. Nunca julgara isso. Sabia agora que o Agostinho Serra pertencia a outra raça e que a sua era a mesma dos negros descarregadores dos molhes dos portos por onde andara. Irmão dos negros que colhiam café e pilavam milho, por essas terras distantes de oiro e febres.
Fora e voltara - sempre passageiro de terceira.
Estava agora ali, trabalharia amanhã no fundo de uma mina a viver em trevas - a sua vida assemelhava-se a uma mina em trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque sabia haver lá em cima outra vida com luz e ar. Vivia na sub-humanidade - morava na cave de um prédio de muitos andares, onde, nos altos, havia lugar para ele e para os companheiros.
O canavial, ali perto, falou à noite. E a noite não lhe respondeu. Só as águas do Tejo contavam histórias estranhas de dramas seus.
Vinha aí a maré alta. Ele desconhecia ainda que a vida dos homens é um rio com marés, um rio com fluxos e refluxos que um dia o havia de trazer para a luz. E as águas não se aquietariam nunca, porque então não seriam de rio, mas de charco. A vida nunca é charco. Rio aparentemente igual e sempre diferente.
Cruzou as mãos por detrás da nuca e assim ficou longo tempo, estendido no areal.
Os rapazes não tinham vindo naquela noite. Não se ouviam os seus brados, nem as suas gargalhadas. Quando eles estavam, via-se moço também. E parecia-lhe que andava com eles a correr e a saltar, esquecido de tudo. Ria-se dos seus ditos, seguia-lhes as brincadeiras.
Mas noites havia de tristeza mais funda. Então, não ficava a esquecer-se de si. Seguia pelo carril do valado e andava sem destino. Ora a passo lento, ora em marcha leve. Os pensamentos acompanhavam-no de mãos dadas.
Aquela era uma dessas noites. Os rapazes tinham procurado outro rumo e pudera ficar só. Silêncio e ele.
E ambos falavam como se se entendessem, como amigos velhos encontrados ao fim de caminhar diferente. O silêncio dizia-lhe palavras que mais ninguém lhe poderia dizer naquela emposta. Falava pelos homens que ainda se não haviam encontrado.
Estavam ali, lado a lado, confessando anseios e desditas, sem erguer a voz. As palavras pareciam rezadas, não fosse alguém traí-las. A noite escutava-os, mas sabia calar os segredos do ceifeiro e do silêncio. Nem as luzes da outra margem, nem as estrelas, conheciam a conversa que ciciavam ao ouvido um do outro.
Dois vultos saíram da negridão e vinham pelo valado. O ceifeiro não os viu, nem ouviu - continuava entregue ao futuro e, embora o seu companheiro se calasse, ficou, como um louco, a falar sozinho. Quando voltou a si, os vultos já estavam sentados na areia; o lume de um cigarro brilhava na praia. Tinham as cabeças voltadas para ele e viu-lhes os olhos vivos e iluminados de interrogações. Talvez alucinação, mas bem os sentia penetrarem-lhe o cérebro, agora inundado pela sua presença.
Voltou-se para o outro lado, mas aqueles olhares vogavam no Tejo, como a tremulina da luz do luar, mas lucilavam mais, porque eram interrogadores. E subiram depois pela noite, piscando na outra margem; aqui, isolados num casal, mais adiante, na mancha dos luzeiros de lugarejos e vilas.
Sentiu vontade de se erguer e tomar o carril, caminhando sem destino, como quando os rapazes vinham e precisava isolar-se. Mas chegara primeiro e o corpo pedia-lhe repouso. Cerrou os olhos e o olhar dos outros brilhou mais dentro do seu.
Se não havia onde fainar ou nas horas de comer, os dois encontravam sempre motivo de conversa - diálogo igual, mas novo a cada hora. Sabiam de cor os projectos de há tanto sonhados. Trabalhavam na mira de os realizar - talvez no ano próximo. Tiravam à barriga o escasso que ganhavam, porque só assim poderiam partir.
Aquela ideia avassalara-os, dominando-lhes a vida. Andavam sempre juntos, como se o sonho estivesse dividido pelos dois e só assim pudesse ser repetido.
Devoravam as horas a falar dele, antevendo ambientes que o João da Loja lhes criara quando contava, aos serões, as suas aventuras por outras terras. Aquele homem, de quem se diziam os maiores crimes, tornara-se no alvo dos seus desígnios e na rota do seu futuro. Os dois companheiros punham-se sempre mais perto a escutá-lo; de quando em quando, trocavam olhares entre si, porque o sonho era de ambos e o desejo de abalar dominava-os a todo o momento.
Aqui nunca mais passariam da mesma piolheira. Trabalhar de dia para comer de noite... e mal. Condenados a uma pena, terem porta por onde se via a liberdade e ficarem entre grades à espera da morte.
- Isso é que não!... -concordavam ambos. Não queriam fortuna - se viesse, melhor -, mas granjear trabalho, pão certo e alguma coisa para a velhice; quando os anos pesam, não há patrão que conheça o servo.
Naquela noite, tinham vindo até à praia, trocando vagas palavras, mais pensativos do que palradores. As quatro paredes lá da terra não as podiam vender, pois as mães precisavam de telha; também eles quando regressassem encontrariam abrigo. Já ia em cinco anos que aquela ideia os tomara: desde então, nunca se desprendera deles.
Agora tornara-se parte integrante do seu corpo - como se aquele rumo lhes fosse marcado no berço por fatalismo. Nunca lhes dera para se prenderem a um rancho e virem à Lezíria fazer uma temporada larga. Os outros voltavam mirradinhos de febres, a caminho da botica ou do bruxo, e aquela marca nunca mais passava.
Eles esgaravatavam por todos os lados e sempre conseguiam fugir a tais contratos. Neste ano tudo correra pior e não podiam ficar de braços cruzados, metendo a mão no saco das economias para tirar, em vez de lhe juntarem alguns cobres, mesmo poucos.
Suplício constante, aquela miragem de partir - suplício e esperança das horas amargas.
O rio fora-os atraindo como a estrada da sua evasão. Tinham caminhado para ali, sem o ouvir, mas sentindo-o chamar. Ficavam agora a dois passos da sua carreira, como se em breve fundeasse o barco que os levaria para as terras do João da Loja.
Ali era o cais de embarque e mais outro companheiro esperava também o momento de abalar. Não tinham malas, nem sacos. Mas partiriam com os anseios, e isso bastava aos emigrantes.
As estrelas no céu prometiam-lhes boa viagem. E interrogavam-se, mudos.
Reviam todo o sonho acalentado durante cinco anos. Imaginavam as cidades e os campos da nova pátria, onde iriam trabalhar - trabalhar em quê?...
Em tudo o que braços humanos pudessem pegar. Não havia melindres na escolha, nem hesitações. Começariam outra vida, mais dura talvez, mas mãe. Sorria-lhes a casa onde à noite voltavam, felizes da jorna, embora quebrados de fadigas. E os carinhos das companheiras, mulheres estranhas que os seduziam, acalentavam-lhes o corpo e davam-lhes ímpetos para lutar. O trabalho não os arrefentava - nunca se tinham furtado a dar o seu esforço.
Contudo, queriam pão certo - queriam ser homens. Tudo se vestia de cores novas para os receber e acarinhar: as cidades e os campos, as casas entre flores e as companheiras.
Vida de trabalho, sim, mas vida de homem.
Falta pouco para embarcar, o navio não tarda. Não lho disseram; eles porém adivinhavam-no, pois o rio agita mansamente as águas para embalar o barco.
O companheiro que espera ainda não deu palavra e parece triste. Talvez pense na mulher e nos filhos. Razão tiveram eles para nunca se comprometerem. Depois, sim, quando voltassem...
Se o outro ceifeiro não estivesse para ali tão alheado, iriam perguntar-lhe quais as razões do seu acabrunhamento. Emprestariam ainda a sua fé àquele companheiro abatido e silencioso.
- Eh, camarada!... - disse um deles.
O outro não se moveu. Olharam-se e ficaram a ouvir os seus sonhos.
- Camarada!... - gritou mais alto.
O brado encheu a noite. O ceifeiro rebelde continuou estendido na areia; por fim voltou a cabeça, contrariado.
- Vossemecê sabe onde vai ter esta água"!
A resposta tardou. Quando veio, a voz soou-lhes frouxa ou dorida.
- Vai por aí abaixo...
Logo se esqueceu de que o tinham interrogado. Os rapazes não vieram ainda jogar ao «primeiro da bela mula» e prefere ficar só. Porque viriam aqueles dois companheiros despertá-lo agora- Não lhe agradava moer o tempo em conversas para entreter. Falariam do trabalho e de mulheres, das suas terras e dos seus amigos. Conversas de quem nada tem para dizer e procura palavras fiadas.
- O camarada parece que anda a modos doente... Silêncio.
Um deles chegou-se mais ao ceifeiro rebelde, quase a tocar-lhe:
- Alguma sezãozita por aí a minar...
- Na!...
A cara do gaibéu agradou-lhe. Era magra e o olhar não o feria.
E continuou, erguendo o busto e fixando-se nos cotovelos:
- Já tenho o coirão curtido.
- Dos anos daqui!...
- Pois! Agora... só alguma para cavalo é que cá entra.
- Ah!... vossemecê é cá do sítio?
- Não fui parido na borda de nenhuma aberta, ande lá. Sou daqui perto, nem quase me lembro donde. De Aldeia Galega!...
- Não conheço - interrompeu o outro gaibéu.
- É para riba?... - interrogou o outro.
- Na!...
E indicou para o sul num movimento de cabeça.
- Fica ali no mar da Palha.
Os gaibéus quedaram-se contrafeitos, sem perceber e sem perguntar. E volveram os olhos para aquele lado. Um deles inclinou-se para trás, apoiando-se também aos cotovelos.
- Vossemecê sabe onde é que isto vai ter?... E apontou o rio, a cobrir a praia aos poucos.
- Isso nem se sabe, homem.
- Ao fim do mundo...
- E o mundo é grande...
- Longe?!...
Estavam no porto à espera do barco que os levaria na viagem para a liberdade. Só sabiam que iam partir com mais um companheiro. Assim seria melhor, pois nascera ali perto e podia dizer-lhes tudo o que ansiavam conhecer.
- Ao fim do mundo - respondeu o ceifeiro rebelde.
Os gaibéus entreolharam-se confusos. Não se haviam enganado, ainda bem. Daquela praia poderiam abalar para as terras de além, donde o João da Loja voltara rico.
- Contou-me um marinheiro quando embarquei. Esta água Vem vai a Lisboa e depois mar fora. E os mares são muitos e é só um. 
                                                                                                                                      In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.

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