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Pareciam cercados no trabalho pelo
braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva
ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao
mesmo tempo por toda a parte.
O ar escaldava; lambia-lhes de febre
os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa
provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das
nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela
fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam,
pastoso e espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os
pulmões com metal em fusão.
Quase exaustos, os peitos arfavam
num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.
A ceifa, porém, não parava, e ainda
bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um
boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios
não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também.
E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e
conduto da vila.
Então os dias tornar-se-iam ainda
mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.
Vencidos pelo torpor, os braços não
param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o
hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho
da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo
balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.
Talvez muitos deles pensem que o
arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se
também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que
deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima
mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das
foices nos braços esgotados. Estão atafulhadas de amarelo, de pensamentos e de
grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.
Ninguém entoa cantigas para animar,
embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer.
Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.
Como podem as cachopas entrar em
cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que
respiram se tornou lava do vulcão da planície?!
- Auga!... Auga!...? – gritam os
rapazes aguadeiros.
Os seus brados parecem vogar sobre o
rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e
angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Talvez por isso também as raparigas
não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes recordassem a sua
condição de alugadas.
- Auga!... Auga!...
Os três gaibéus andam numa roda viva
a encher os cântaros e a entregá-los às mãos suplicantes dos ceifeiros. As
gorjas agitam-se na sofreguidão da sede, mas o travo amargo da boca não
desaparece com a água choca e morna. O sol amolece tanto a água como os corpos
dos ceifeiros.
- Auga!... Auga!...
Os rapazes vão de fila em fila e
recordam-se da história do pai do Cadete. Só agora compreendem as suas
aventuras de ladrão.
Para o ceifeiro rebelde os brados
dos aguadeiros assemelham-se a gritos de socorro no meio do incêndio. Sente-se
mais abatido do que os outros, porque compreende as causas da angústia do
rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele tem um norte. E os camaradas ainda
não encontraram bússola.
«Se todos a tivessem...»
O ceifeiro rebelde pende mais a
cabeça para a seara, como se as torturas e as esperanças lhe pesassem.
As camisas e as blusas estão
empapadas de suor. Os homens trabalham com as camisas abertas e mostram a
cabelugem crespa dos peitos afogueados. As mulheres gostariam agora, mais do
que nunca, de ser homens também.
A espaços metem as mãos nas golas
das blusas e sacodem-nas, para que o ar, mesmo quente, lhes refresque os seios.
- Eh, lá!... Essas mãos!...
- Eh, gente!...
O ar fica a repetir aquela chicotada
no silêncio opressivo. Nem um pássaro anda no ar. Não conseguem singrar agora
naquele céu de metais em fusão.
Os pássaros não voam. Mas os
ceifeiros trabalham.
A ceifa não pára - a ceifa não pára
nunca.
O Agostinho Serra tem os seus encargos,
fala deles a toda a hora, e se começa a chover apanha um boléu dos grandes. A
Senhora Companhia não perdoa a renda da terra, haja o que houver.
De quando em quando, um deixa a
foice e vai saltando as travessas para se ir abaixar a boa distância do olhar
dos capatazes.
E procuram todos o mesmo rumo. É que
um deles passou ao companheiro do lado que na regadeira do meio a água ainda
corre para os canteiros mais rezentos.
A notícia correu de ceifeiro em
ceifeiro. Por isso levam todos o mesmo rumo quando largam a foice nas
travessas.
Deitados de borco na linha que faz
berço às águas, podem refrescar o rosto e molhar a cabeça à vontade. Um deles
atirou-se para dentro da regadeira, querendo apagar a chama que lhe consumia o
corpo. Quando voltou ao rancho, disse ao capataz que caíra à regadeira, numa
explicação tola.
- Empeci num almeirão, seu
Francisco.
- Vais fresco, vais. Largas-te aí
com algumas sezões que não te ajudas com elas. Vai lá mudar de fato, homem.
- Obrigado, seu Francisco! Não vale
a pena...
Pouco imaginativos, houve mais dois
que tropeçaram no almeirão, E logo os capatazes se puseram à espreita.
- Nem mais um vai àquele lado. Quem
se quiser abaixar, não passa do canteiro desta ponta. Ninguém os cobiça... Se o
patrão soubesse desta paródia, era eu que o ouvia.
- Raio de danados!... Tenho aqui uma
carga de abusões... - acrescenta outro.
A lâmina das foices vai cega de
todo. Os punhos não podem dar luz, pois o vigor já morreu de há muito. Só
impulso dos braços tomba as espigas.
A ceifa corre lenta. Dolorosa e
lenta.
E os capatazes bramam.
- Com essa porrada já temos
sementeira para o ano. É mais o arroz que fica do que o que vai na espiga.
Os ceifeiros não os podem ouvir. Os
ralhos não os espertam, porque todos amodorram por igual. Homens e mulheres, novos
e velhos.
Nos corpos não há tréguas. As pernas
estão alquebradas e os braços quase bamboleiam sem ganas. Os troncos
detinham-se a dores e as cabeças pendem como cabeças de enforcados. Nos rostos
serzidos de esgares, os olhos apagam-se e as bocas resfolegam a quererem
digerir o ar de lava.
E a ceifa não pára - a ceifa não
pára nunca.
As velhas ciciam preces para que ela
não pare - a ceifa é o pão.
Mas a ceifa corre lenta. Dolorosa e
lenta. E os capatazes bramam.
- Eh, gente!... Vá de animar essas
mãos, que isto assim vai de enterro. Porrada pequena!...
- Eh, Ti Maria do Rosário!...
Aquela velha ficara para trás a
cortar o espaço com a foice, e não via nem ouvia.
Imaginava que nunca cortara arroz em
toda a sua vida com mais frenesi - nem nos seus tempos de moça.
O capataz saltou ao canteiro e
sacudiu-a. Ela volveu os olhos e o Manel Boa-Fé sentiu-lhe o bafo quente da
boca.
- Então, Ti Maria do Rosário?!...
- Hum?!...
- Sente-se doente?!... Vá um quartel
para o barracão... O corpo da velha sacode-se num estremecimento de pânico
quando o capataz lhe fala em descansar.
Nem para ela nem para os
companheiros a ceifa pode parar - a ceifa é o pão.
- Eu, homem?!
- Pois!... Ficou-se cá atrás...
Ainda consegue andar- A velha vê os camaradas lá mais adiante, ora voltados à
seara, ora voltados à resteva, naqueles movimentos que à distância parecem
absurdos.
O cérebro diz-lhe que deve ir para
junto deles, e depressa, mas as pernas já não obedecem ao seu mando. O capataz
segura-lhe os braços magros e tira-lhe a foice.
- Isso não, Manel!... Isso não!... -
clama a Ti Maria do Rosário num desespero.
O corpo treme-lhe, os olhos gotejam.
Levanta as mãos numa súplica, não percebe o que faz e depois luta com o homem,
desesperada.
- Ó Manel!... A foice... dá-me a
foice!... A ceifa não pode parar - a ceifa é o pão.
Os companheiros continuam lá à
frente, cada vez mais longe, a derrubar espigas e a amontoar gavelas.
- Auga!... Auga!...
De ceifeiro em ceifeiro, os três
gaibéus oferecem água salobra e requentada que não mata a sede. Mas eles
deixam-na escorrer pelo queixo e a água ensopa-lhes a camisa suada.
A figura da Ti Maria do Rosário,
dobrada e trémula, torna-lhes mais penoso o trabalho. Cada um conhece nela o
futuro que lhes baterá à porta, um dia. O futuro atabafa-lhes o peito, mais do
que o ar ardente que queima os pulmões.
- Ó Manel... A foice... Dá-me a
foice!...
Os outros vão Já adiante a ceifar
sempre e ela quer ir na sua companhia. O capataz lá a largou, mas olha os
camaradas cada vez mais ao longe; sombras que se perdem.
E depois não os vê. Para onde
foram?!...
Mas há-de apanhá-los, tem a certeza,
pensa que vão a fugir para a deixarem só, mas ela vai passá-los ainda, e então
lhes fará ver quem sabe ceifar à carreira. Arrependem-se do que lhe fizeram,
pensa a velha. E quando lhe pedirem que espere há-de desprezá-los.
Pela lezíria fora ficará uma estrada
larga, aberta pela sua foice, por onde os outros correrão a chamá-la.
«Ti Maria do Rosário!... Ti Maria do
Rosário!...»
Ainda não principiou o seu eito, mas
já os vê junto de si. Ainda bem. Eles adivinharam o que lhes ia acontecer e
voltaram depressa para trás. Ainda bem, não gosta de fazer mal aos outros, foi
sempre boa companheira. Em toda a parte deixou amigos. E se pensava na
desafronta, era só porque os companheiros se tinham posto a ceifar como
máquinas e os perdera de vista.
Não falta muito: é uma corrida curta
para se pôr à ilharga deles, ensinando-lhes como se traça um eito na devida
conta.
Cada ruga que lhe goiva o rosto é
uma safra onde moirejou. E as rugas não têm conta no seu rosto mirrado. Se se
pudessem contar, saberiam todos quantas ceifas já fez.
In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.
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