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sábado, 3 de setembro de 2016

O EXERCÍCIO DA CRÓNICA com José Saramago, na visão de Maria Alzira Seixo

Imagem encontrada em http://desaramago.blogspot.pt/
A primeira notoriedade de José Saramago adveio-lhe da sua actividade de cronista, através de textos publicados em A Capital (1968-1969) e no Jornal do Fundão (1971-1972), mais ou menos contemporâneos dos seus livros de poesia. Reunidos em volume, tais textos dão origem às colectâneas Deste Mundo e do Outro (1971) e A Bagagem do Viajante (1973), aliás seguidos pouco depois de outros dois livros de matéria assimilável, As Opiniões Que o DL Teve, de 1974, e Os Apontamentos, de 1976. Estas obras revelam um pleno e regular exercício da prosa (por parte de um escritor que entretanto se havia dedicado à poesia) durante os anos, respectivamente, de 1968, 1969, 1971, 1972, 1973 e 1975. Insiste-se, pois, na capacidade de produção regular de José Saramago, sublinhando, por um lado, que a crónica corresponde a um texto curto, de inspiração imediata e não necessariamente aprofundada, de diálogo com o quotidiano ocasional, mas que, por outro lado, por isso mesmo exige grande capacidade de medida e de concentração, possibilidade de resposta a estímulos nem sempre muito relevantes e uma relação com o tempo (e isto parece-nos fundamental) que coloca o sujeito da escrita numa posição polivalente de quem capta a vibração do momento que passa, prolongando as suas ressonâncias pela fundura de um passado que o promove em sabedoria reflectida e pelo projecto de um futuro que o texto pressupõe em acção transformadora, de aperfeiçoamento eficaz. Há, portanto, vários pontos a reter em função do exercício regular da crónica neste ponto da carreira de José Saramago: uma certa coincidência de atitude entre a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade do texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu sentido); uma prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar no escritor um treino acentuado dos recursos estilísticos em função da densidade e da economia expressivas; um hábito de colocar em conjunção de interesses a dinâmica do tempo que se vive (seus acontecimentos, suas marcas específicas), a sensibilidade do sujeito que o vive e as potencialidades verbais susceptíveis de definirem essa mesma expressão – numa palavra, a qualidade literária do texto (e veremos como, no fundo, a crónica de José Saramago se articula quase sempre em torno destes três pólos: o tempo, o sujeito e a palavra que fabula a experiência que esse mesmo sujeito entretece com o seu tempo).
Entretanto, há que distinguir as crónicas de Deste Mundo e do Outro e de A Bagagem do Viajante das que formam os conjuntos As Opiniões Que o DL Teve e Os Apontamentos. As primeiras são textos jornalísticos (que do jornalismo colhem a sua brevidade e efemeridade) e assumem uma relação directa com a literatura (na medida em que a crónica, partindo da notícia que faz o tempo, dá mais lugar ao sujeito da escrita que qualquer outro escrito jornalístico, quer no plano da opinião, quer no da sensibilidade); as segundas, de tipo editorialista, eludem a marca mais acentuadamente literária para se proporem como emissões alargadas de uma opinião que se pretende genérica, colectiva, a dos leitores que, na resposta crítica aos acontecimentos do tempo, o jornalista procura representar. Nas Opiniões, Saramago manifesta as interrogações e perplexidades a que podia ter direito a condicionada liberdade de expressão dos tempos do caetanismo; nos Apontamentos (e apenas dois anos mais tarde, portanto), assume uma frontal posição de coincidência com o processo revolucionário de 75, não escamoteando, no entanto (e será bom recordá-lo!), críticas severas a algumas das faces desse processo; dois longos anos, de um lado, seis escassos meses, do outro, em precipitado empenho de construção que se termina pela decepção do seu abalo. É urgente reler estes dois livros à luz do presente, relembrar muitos dos condicionamentos que o imediato ante-25 de Abril impunha à condição humana portuguesa e percorrer com minúcia o modo como o Diário de Notícias acompanhou esse crucial período da nossa história, entre o 11 de Março e o 25 de Novembro, a ver se de uma vez por todas se tenta compreender uma acção que, com irregularidades e deficiências (que aliás o próprio articulista constantemente admite), marcou de modo determinante a vida portuguesa dos tempos da revolução, que sem a suficiente ponderação se tem de modo fácil e leviano constantemente condenado, muitas vezes como alibi para outros erros e para outras formas menos confessadas de influência incerta sobre o processo democrático que, após o 25 de Abril, nos deu ao menos este bem precioso da liberdade. Tendem uns a esquecer que José Saramago foi figura central dessa acção, para poderem agora enaltecer com boa consciência os seus méritos de romancista; outros manterão bem viva a lembrança da sua luta, e com ela farão esmorecer o reconhecimento da importância da sua actividade literária; como se fosse impossível integrar no modelo de uma personalidade humana coerências, contradições, opções de vida, linhas de acção, tudo o que nos faz ser com os outros e dos outros simultaneamente nos diferencia; como se fosse impossível (talvez porque não seja vantajoso…) reconhecer o outro na sua especificidade insuspeitada e assim eliminar todo, mas todo, o fanatismo. Do nosso ponto de vista, estas duas colectâneas, que vivem fundamentalmente do jornalismo político e conjuntural, sem pretenderem uma integração imediata nos domínios da literatura, constituem documentos de grande importância para a história da cultura contemporânea, ponto de vista de um grande escritor sobre o tempo que ele ajudou a formular.
O essencial da nossa atenção, para uma análise da obra literária de José Saramago, concentrar-se-á, porém, e neste sector da crónica, sobre os escritos que compõem Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante. Costuma dizer o autor, referindo-se à relação que as crónicas entretecem com a sua restante obra, que «está lá tudo»; e, com efeito, quase tudo, pelo menos, parece já lá estar. Não só no que diz respeito à temática: a relação identidade/alteridade; a articulação entre o homem e a terra; o projecto humano e a sua transposição, ou transcendência; a concepção do «homo Viator» e a sua incidência temporal; não só também no que diz respeito à constelação de motivos preferenciais que preenchem essa temática: a água, a embarcação, a estrela, o silêncio, a pedra, o rumor – mas também nas atitudes dominantes: cepticismo radical no limite do desengano em fulgurações entretecido por um ilimitado entusiasmo na capacidade de construção humana, no projecto que é o sonho; mas também ainda na frase tensa que não se fecha completamente à irrupção lírica, na mordacidade que não exclui a ternura, na ironia que quase sempre traz a cumplicidade do afago.
Estes dois livros, de leitura fascinante, põem-nos em contacto com esse tempo essencial que a crónica assume (simultaneamente fragmentado e intenso, dada a brevidade contida de cada texto) – «descobre-se que só violentamente se enchem os dias da vida. E então todo o passado aparece sob uma nova iluminação» DMO, 126 –, percebido por uma sensibilidade, toda olhos e inteligência, que capta o sentido das coisas – «Aqui só se fala de simplezas quotidianas, pequenos acontecimentos, leves fantasias» ou «de verdades que parecem mentiras», BV, 56 – e que se afina de muito perto pela do leitor, quer em atitude de sincronia quer em atitude de provocação – «travo o mais que posso para não me estatelar no tom da gravidade pretensiosa (…), prefiro esta corda cúmplice, entre cronista e leitor que alguma coisa viveram e que, por isso mesmo, não se tomam demasiadamente a sério», DMO, 79 –, relatando factos, não tanto pelo amor do relato, mas para fazer vibrar as coisas, o seu sentido, a sua visão, a nossa passagem por elas e o abrir delas em nós, num estado de permanente reconsideração e descoberta, na abertura de todos os possíveis ao outro lado deles – «ao cair da tarde (…) gosto de andar pelas ruas da cidade, distraído para os que me conhecem, agudamente atento para todo o desconhecido, como se procurasse decididamente outro mundo», BV, 99.
Fotografia encontrada em http://www.cidadedoporto.pcp.pt/
Que campos cobrem as crónicas de José Saramago? Os da actualidade (parte-se por vezes de uma notícia nos jornais); os da memória (regressa-se à infância, suas marcas, suas recordações, suas nostalgias); os do ambiente (evoca-se a cidade, outras cidades conhecidas, o campo, os vários tipos de ruralidade); os da tipologia humana (o amola-tesouras, o cego do harmónio, os frequentadores de café, etc., etc.); os da sugestão frásica e vocabular (um verso, uma frase – a sua capacidade evocativa poderão ser matéria para uma crónica); os da cultura (domínios da arte, vultos de escritores, leituras, etc.); miúdas situações do quotidiano anónimo; efabulações de tipo onírico que hesitam entre a vocação para um destinatário infantil e uma acentuada propensão do escritor para os domínios do maravilhoso e do fantástico que mais tarde veremos concretizar-se melhor na sua restante obra.
São, assim, bastante diversas na matéria, as crónicas de José Saramago; porém em geral obedecendo a um modelo singular que, se não é fixo, se reparte por alternativas não muito diferenciadas. Se o próprio título da primeira colectânea aponta para uma dualidade que, através da coordenação, justapõe complexificando em vez de simplistamente praticar a disjunção (Deste Mundo e do Outro), e se o título da segunda pressupõe a noção de um «homo Viator» que não é limite absoluto de si próprio (embora essa tentação possa surgir no seu caminho) mas entidade essencialmente definida pelos acidentes (acessórios) que congrega no (ou para o) seu caminho – temos nestes dois princípios de indicação estrutural informações fundamentais para a apreensão da sua crónica como prática específica de um género determinado. Na verdade, quase estes seus textos se dividem em duas partes: uma primeira parte de tratamento genérico do tema, sucedendo-se a sua especificação parcelar – sendo esta divisão submetida a variantes, que podem revestir as seguintes formas: enunciado de um tema/derivação para um tema afim; enunciado de um tema/derivação para um tema contrário ou contraditório; narração de um caso, ou fábula, ou história/considerações moralizantes (ou por ordem inversa); e outras. Quase sempre, portanto, a arquitectura discursiva se bipolariza, mantendo como resultado uma tensão ideológica, ou a sua conversão através da ironia ou da conclusão (ou abertura) claramente moralizante. Essa construção dual do texto aponta igualmente para uma oscilação de soluções, para um compromisso incómodo, para a necessidade de escolha, e outras atitudes humanas sempre definidas pela tensão, a incerteza ou mesmo a incompatibilidade.
Porque uma certa distensão epidérmicas no modo de narrar ou de descrever de José Saramago não consegue esconder a violência da crítica (a sua crónica é quase sempre crítica), reflexiva, moralista ou satírica (campos do registo discursivo por onde se expande). Com uma agravante: a da integração e exposição do sujeito da escrita em muitos dos seus textos, integrando-o nesses raciocínios e tensões, englobando-o em todos esses mundos (e outros mais, ou o imenso outro que não é este, e por isso faz vibrar profundamente a nossa imaginação) e fazendo mesmo dele matéria discursiva primeira. Que por isso mesmo não pode evitar a reflexão essencial, a que se orienta em torno da crónica como género, seus possíveis e suas realizações; sempre escudado (para salvaguarda de um pretensiosismo descabido ou de uma literatice incómoda) por essa magnífica capacidade de estabelecer cumplicidades explícitas com o leitor que é um dos maiores encantos da prosa de José Saramago (que assim igualmente exorciza, no apelo da campanha e nos intervalos da violência constativa e crítica, uma enorme sujeição à vulnerabilidade).
No termo deste capítulo sobre a crónicas, forçoso nos é referir ainda um livro posterior de José Saramago que muito tem a ver, não só com o estilo utilizado nestes seus escritos, mas também com a mundivivência e com a concepção do literário que os informa. Refiro-me a Viagem a Portugal, de 1981. Será esta obra, em princípio, integrável na conhecida categoria dos livros de viagens, muito embora a realização da viagem no país de origem e de permanência (como é aqui o caso) não seja componente habitual deste tipo de literatura; neste caso, porém, preferimos integrá-lo numa zona de hesitação entre a crónica e a ficção (zona que adiante especificaremos melhor em relação a outros textos do escritor), não só porque assume grande parte da caracterização com que abrangemos as suas crónicas mas porque se constitui como uma história (quase uma ficção) em que o autor é «o viajante» e em que a especificidade das terras e dos seres com que se cruza durante o seu itinerário determinado perlo país, a sedução ou estranheza que sobre ele exercem, são tratados num registo de seriação descritiva, sim (como na literatura de viagens), mas fazendo avultar os saldos reflexivos e os desvios líricos, quando não irónicos (como na crónica) e, sobretudo, a componente mágica da sua selecção, o entretecer propositado ou casual de atitudes, a fulgurância dos encontros ou a lateralidade das emoções, como faria num dos seus romances.
Aliás, não será por acaso (e citamo-lo apenas a título de exemplo) que uma das crónicas de Deste Mundo e do Outro, que parte justamente da consideração das Viagens na Minha Terra de Garrett, se especifica, na sua segunda parte (aliás aqui homologamente bifurcada), para o tema da viagem, e da viagem na nossa terra, homóloga desse «prazer digressivo» de Garrett, também desvio de caminhos no caminho discursivo do texto. E escreve José Saramago (e repare-se em toda a metáfora imbricada da viagem e do discurso): «Pois (agora é que eu chego) o melhor das Viagens é exactamente a viagem – a crónica. Se o leitor não conhece ou já não está lembrado, abra o livro e saboreie. Começa logo no título: Viagens na minha terra. Lidas estas palavras, faz a gente uma pausa, deixa que os olhos escorreguem para o vago da meditação e murmura: viagens na minha terra. A terra de que se fala não vai além de Santarém, ainda fica muita légua por andar e outros vales com outros rouxinóis – ou sem eles. (…) Deu-se-me um nó na garganta e pus-me a olhar, do horizonte desta mesa, essa terra que é minha, que não conheço toda, que mal conheço, de que tão pouco sei, onde há gente que fala a minha língua, gente para quem escrevo estas crónicas, que são como pontes lançadas no espaço vazio à procura de solo firme onde possam assentar a sua esperança de duração. E então veio-me cá de dentro uma grave e grande cólera contra a literatura que de tudo faz motivo e ocasião. Pensei que uma cura de silêncio. Mais silêncio?, pergunta daí o leitor. Não, respondo-lhe eu: um silêncio diferente. O silêncio de quem reflecte, de quem se recolhe a si mesmo, de quem pensa e mede as suas forças. O silêncio de quem se acha colocado no arranque de uma estrada e convoca as forças preciosas que a viagem lhe vai exigir. A viagem na minha terra, pois é dela que estou falando», 52-53.
A citação é longa, mas demonstra mutas das observações feitas ao longo do capítulo; assim como demonstra a procedência de um dos temas maiores da obra de José Saramago: o tema da viagem. Viagem que ele identifica com a crónica: percurso do espaço, excurso no tempo; a partir do homem: que escreve, situa e, ele só, constrói. «Deito-me ao comprido do barco que a corrente leva e vejo passar ramos verdes, brancas nuvens, céus de azul e pérola, aves prodigiosas. Cai sobre mim uma funda e dolorosa alegria», DMO, 232.

In «O Essencial sobre José Saramago», de Maria Alzira Seixo, Colecção Essencial (n.º 33), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Novembro de 1987 (1.ª edição).

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