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A
primeira notoriedade de José Saramago adveio-lhe da sua actividade de cronista,
através de textos publicados em A Capital
(1968-1969) e no Jornal do Fundão
(1971-1972), mais ou menos contemporâneos dos seus livros de poesia. Reunidos
em volume, tais textos dão origem às colectâneas Deste Mundo e do Outro (1971) e A
Bagagem do Viajante (1973), aliás seguidos pouco depois de outros dois
livros de matéria assimilável, As
Opiniões Que o DL Teve, de 1974, e Os
Apontamentos, de 1976. Estas obras revelam um pleno e regular exercício da
prosa (por parte de um escritor que entretanto se havia dedicado à poesia)
durante os anos, respectivamente, de 1968, 1969, 1971, 1972, 1973 e 1975.
Insiste-se, pois, na capacidade de produção regular de José Saramago,
sublinhando, por um lado, que a crónica corresponde a um texto curto, de
inspiração imediata e não necessariamente aprofundada, de diálogo com o
quotidiano ocasional, mas que, por outro lado, por isso mesmo exige grande
capacidade de medida e de concentração, possibilidade de resposta a estímulos
nem sempre muito relevantes e uma relação com o tempo (e isto parece-nos
fundamental) que coloca o sujeito da escrita numa posição polivalente de quem
capta a vibração do momento que passa, prolongando as suas ressonâncias pela
fundura de um passado que o promove em sabedoria reflectida e pelo projecto de
um futuro que o texto pressupõe em acção transformadora, de aperfeiçoamento eficaz.
Há, portanto, vários pontos a reter em função do exercício regular da crónica
neste ponto da carreira de José Saramago: uma certa coincidência de atitude
entre a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade
do texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu
sentido); uma prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar no
escritor um treino acentuado dos recursos estilísticos em função da densidade e
da economia expressivas; um hábito de colocar em conjunção de interesses a
dinâmica do tempo que se vive (seus acontecimentos, suas marcas específicas), a
sensibilidade do sujeito que o vive e as potencialidades verbais susceptíveis
de definirem essa mesma expressão – numa palavra, a qualidade literária do
texto (e veremos como, no fundo, a crónica de José Saramago se articula quase
sempre em torno destes três pólos: o tempo, o sujeito e a palavra que fabula a
experiência que esse mesmo sujeito entretece com o seu tempo).
Entretanto,
há que distinguir as crónicas de Deste
Mundo e do Outro e de A Bagagem do
Viajante das que formam os conjuntos As
Opiniões Que o DL Teve e Os
Apontamentos. As primeiras são textos jornalísticos (que do jornalismo
colhem a sua brevidade e efemeridade) e assumem uma relação directa com a
literatura (na medida em que a crónica, partindo da notícia que faz o tempo, dá
mais lugar ao sujeito da escrita que qualquer outro escrito jornalístico, quer
no plano da opinião, quer no da sensibilidade); as segundas, de tipo editorialista,
eludem a marca mais acentuadamente literária para se proporem como emissões
alargadas de uma opinião que se pretende genérica, colectiva, a dos leitores
que, na resposta crítica aos acontecimentos do tempo, o jornalista procura
representar. Nas Opiniões, Saramago
manifesta as interrogações e perplexidades a que podia ter direito a
condicionada liberdade de expressão dos tempos do caetanismo; nos Apontamentos (e apenas dois anos mais
tarde, portanto), assume uma frontal posição de coincidência com o processo
revolucionário de 75, não escamoteando, no entanto (e será bom recordá-lo!),
críticas severas a algumas das faces desse processo; dois longos anos, de um
lado, seis escassos meses, do outro, em precipitado empenho de construção que
se termina pela decepção do seu abalo. É urgente reler estes dois livros à luz
do presente, relembrar muitos dos condicionamentos que o imediato ante-25 de
Abril impunha à condição humana portuguesa e percorrer com minúcia o modo como
o Diário de Notícias acompanhou esse
crucial período da nossa história, entre o 11 de Março e o 25 de Novembro, a
ver se de uma vez por todas se tenta compreender uma acção que, com
irregularidades e deficiências (que aliás o próprio articulista constantemente
admite), marcou de modo determinante a vida portuguesa dos tempos da revolução,
que sem a suficiente ponderação se tem de modo fácil e leviano constantemente
condenado, muitas vezes como alibi para outros erros e para outras formas menos
confessadas de influência incerta sobre o processo democrático que, após o 25
de Abril, nos deu ao menos este bem precioso da liberdade. Tendem uns a
esquecer que José Saramago foi figura central dessa acção, para poderem agora
enaltecer com boa consciência os seus méritos de romancista; outros manterão bem
viva a lembrança da sua luta, e com ela farão esmorecer o reconhecimento da
importância da sua actividade literária; como se fosse impossível integrar no
modelo de uma personalidade humana coerências, contradições, opções de vida,
linhas de acção, tudo o que nos faz ser com os outros e dos outros
simultaneamente nos diferencia; como se fosse impossível (talvez porque não
seja vantajoso…) reconhecer o outro na sua especificidade insuspeitada e assim
eliminar todo, mas todo, o fanatismo. Do nosso ponto de vista, estas duas
colectâneas, que vivem fundamentalmente do jornalismo político e conjuntural,
sem pretenderem uma integração imediata nos domínios da literatura, constituem
documentos de grande importância para a história da cultura contemporânea,
ponto de vista de um grande escritor sobre o tempo que ele ajudou a formular.
O
essencial da nossa atenção, para uma análise da obra literária de José
Saramago, concentrar-se-á, porém, e neste sector da crónica, sobre os escritos
que compõem Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante. Costuma dizer o
autor, referindo-se à relação que as crónicas entretecem com a sua restante
obra, que «está lá tudo»; e, com efeito, quase tudo, pelo menos, parece já lá
estar. Não só no que diz respeito à temática: a relação identidade/alteridade;
a articulação entre o homem e a terra; o projecto humano e a sua transposição,
ou transcendência; a concepção do «homo Viator» e a sua incidência temporal;
não só também no que diz respeito à constelação de motivos preferenciais que
preenchem essa temática: a água, a embarcação, a estrela, o silêncio, a pedra,
o rumor – mas também nas atitudes dominantes: cepticismo radical no limite do
desengano em fulgurações entretecido por um ilimitado entusiasmo na capacidade
de construção humana, no projecto que é o sonho; mas também ainda na frase
tensa que não se fecha completamente à irrupção lírica, na mordacidade que não
exclui a ternura, na ironia que quase sempre traz a cumplicidade do afago.
Estes
dois livros, de leitura fascinante, põem-nos em contacto com esse tempo
essencial que a crónica assume (simultaneamente fragmentado e intenso, dada a
brevidade contida de cada texto) – «descobre-se que só violentamente se enchem
os dias da vida. E então todo o passado aparece sob uma nova iluminação» DMO, 126 –, percebido por uma
sensibilidade, toda olhos e inteligência, que capta o sentido das coisas –
«Aqui só se fala de simplezas quotidianas, pequenos acontecimentos, leves
fantasias» ou «de verdades que parecem mentiras», BV, 56 – e que se afina de muito perto pela do leitor, quer em
atitude de sincronia quer em atitude de provocação – «travo o mais que posso
para não me estatelar no tom da gravidade pretensiosa (…), prefiro esta corda
cúmplice, entre cronista e leitor que alguma coisa viveram e que, por isso
mesmo, não se tomam demasiadamente a sério», DMO, 79 –, relatando factos, não tanto pelo amor do relato, mas
para fazer vibrar as coisas, o seu sentido, a sua visão, a nossa passagem por
elas e o abrir delas em nós, num estado de permanente reconsideração e
descoberta, na abertura de todos os possíveis ao outro lado deles – «ao cair da
tarde (…) gosto de andar pelas ruas da cidade, distraído para os que me
conhecem, agudamente atento para todo o desconhecido, como se procurasse
decididamente outro mundo», BV, 99.
Fotografia encontrada
em http://www.cidadedoporto.pcp.pt/
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Que
campos cobrem as crónicas de José Saramago? Os da actualidade (parte-se por
vezes de uma notícia nos jornais); os da memória (regressa-se à infância, suas
marcas, suas recordações, suas nostalgias); os do ambiente (evoca-se a cidade,
outras cidades conhecidas, o campo, os vários tipos de ruralidade); os da
tipologia humana (o amola-tesouras, o cego do harmónio, os frequentadores de
café, etc., etc.); os da sugestão frásica e vocabular (um verso, uma frase – a
sua capacidade evocativa poderão ser matéria para uma crónica); os da cultura
(domínios da arte, vultos de escritores, leituras, etc.); miúdas situações do
quotidiano anónimo; efabulações de tipo onírico que hesitam entre a vocação
para um destinatário infantil e uma acentuada propensão do escritor para os
domínios do maravilhoso e do fantástico que mais tarde veremos concretizar-se
melhor na sua restante obra.
São,
assim, bastante diversas na matéria, as crónicas de José Saramago; porém em
geral obedecendo a um modelo singular que, se não é fixo, se reparte por
alternativas não muito diferenciadas. Se o próprio título da primeira
colectânea aponta para uma dualidade que, através da coordenação, justapõe
complexificando em vez de simplistamente praticar a disjunção (Deste Mundo e do Outro), e se o título
da segunda pressupõe a noção de um «homo Viator» que não é limite absoluto de
si próprio (embora essa tentação possa surgir no seu caminho) mas entidade
essencialmente definida pelos acidentes (acessórios) que congrega no (ou para
o) seu caminho – temos nestes dois princípios de indicação estrutural
informações fundamentais para a apreensão da sua crónica como prática
específica de um género determinado. Na verdade, quase estes seus textos se
dividem em duas partes: uma primeira parte de tratamento genérico do tema,
sucedendo-se a sua especificação parcelar – sendo esta divisão submetida a
variantes, que podem revestir as seguintes formas: enunciado de um
tema/derivação para um tema afim; enunciado de um tema/derivação para um tema
contrário ou contraditório; narração de um caso, ou fábula, ou
história/considerações moralizantes (ou por ordem inversa); e outras. Quase
sempre, portanto, a arquitectura discursiva se bipolariza, mantendo como
resultado uma tensão ideológica, ou a sua conversão através da ironia ou da
conclusão (ou abertura) claramente moralizante. Essa construção dual do texto
aponta igualmente para uma oscilação de soluções, para um compromisso incómodo,
para a necessidade de escolha, e outras atitudes humanas sempre definidas pela
tensão, a incerteza ou mesmo a incompatibilidade.
Porque
uma certa distensão epidérmicas no modo de narrar ou de descrever de José
Saramago não consegue esconder a violência da crítica (a sua crónica é quase
sempre crítica), reflexiva, moralista ou satírica (campos do registo discursivo
por onde se expande). Com uma agravante: a da integração e exposição do sujeito da escrita em muitos dos seus textos,
integrando-o nesses raciocínios e tensões, englobando-o em todos esses mundos
(e outros mais, ou o imenso outro que não é este, e por isso faz vibrar
profundamente a nossa imaginação) e fazendo mesmo dele matéria discursiva
primeira. Que por isso mesmo não pode evitar a reflexão essencial, a que se
orienta em torno da crónica como género, seus possíveis e suas realizações;
sempre escudado (para salvaguarda de um pretensiosismo descabido ou de uma
literatice incómoda) por essa magnífica capacidade de estabelecer cumplicidades
explícitas com o leitor que é um dos maiores encantos da prosa de José Saramago
(que assim igualmente exorciza, no apelo da campanha e nos intervalos da
violência constativa e crítica, uma enorme sujeição à vulnerabilidade).
No
termo deste capítulo sobre a crónicas, forçoso nos é referir ainda um livro
posterior de José Saramago que muito tem a ver, não só com o estilo utilizado
nestes seus escritos, mas também com a mundivivência e com a concepção do
literário que os informa. Refiro-me a Viagem
a Portugal, de 1981. Será esta obra, em princípio, integrável na conhecida
categoria dos livros de viagens, muito embora a realização da viagem no país de
origem e de permanência (como é aqui o caso) não seja componente habitual deste
tipo de literatura; neste caso, porém, preferimos integrá-lo numa zona de
hesitação entre a crónica e a ficção (zona que adiante especificaremos melhor
em relação a outros textos do escritor), não só porque assume grande parte da
caracterização com que abrangemos as suas crónicas mas porque se constitui como
uma história (quase uma ficção) em que o autor é «o viajante» e em que a
especificidade das terras e dos seres com que se cruza durante o seu itinerário
determinado perlo país, a sedução ou estranheza que sobre ele exercem, são
tratados num registo de seriação descritiva, sim (como na literatura de
viagens), mas fazendo avultar os saldos reflexivos e os desvios líricos, quando
não irónicos (como na crónica) e, sobretudo, a componente mágica da sua selecção,
o entretecer propositado ou casual de atitudes, a fulgurância dos encontros ou
a lateralidade das emoções, como faria num dos seus romances.
Aliás,
não será por acaso (e citamo-lo apenas a título de exemplo) que uma das crónicas
de Deste Mundo e do Outro, que parte
justamente da consideração das Viagens na
Minha Terra de Garrett, se especifica, na sua segunda parte (aliás aqui
homologamente bifurcada), para o tema da viagem, e da viagem na nossa terra,
homóloga desse «prazer digressivo» de Garrett, também desvio de caminhos no
caminho discursivo do texto. E escreve José Saramago (e repare-se em toda a
metáfora imbricada da viagem e do discurso): «Pois (agora é que eu chego) o
melhor das Viagens é exactamente a viagem – a crónica. Se o leitor não conhece
ou já não está lembrado, abra o livro e saboreie. Começa logo no título:
Viagens na minha terra. Lidas estas palavras, faz a gente uma pausa, deixa que
os olhos escorreguem para o vago da meditação e murmura: viagens na minha terra.
A terra de que se fala não vai além de Santarém, ainda fica muita légua por
andar e outros vales com outros rouxinóis – ou sem eles. (…) Deu-se-me um nó na
garganta e pus-me a olhar, do horizonte desta mesa, essa terra que é minha, que
não conheço toda, que mal conheço, de que tão pouco sei, onde há gente que fala
a minha língua, gente para quem escrevo estas crónicas, que são como pontes
lançadas no espaço vazio à procura de solo firme onde possam assentar a sua
esperança de duração. E então veio-me cá de dentro uma grave e grande cólera
contra a literatura que de tudo faz motivo e ocasião. Pensei que uma cura de
silêncio. Mais silêncio?, pergunta daí o leitor. Não, respondo-lhe eu: um
silêncio diferente. O silêncio de quem reflecte, de quem se recolhe a si mesmo,
de quem pensa e mede as suas forças. O silêncio de quem se acha colocado no
arranque de uma estrada e convoca as forças preciosas que a viagem lhe vai
exigir. A viagem na minha terra, pois é dela que estou falando», 52-53.
A
citação é longa, mas demonstra mutas das observações feitas ao longo do
capítulo; assim como demonstra a procedência de um dos temas maiores da obra de
José Saramago: o tema da viagem. Viagem que ele identifica com a crónica:
percurso do espaço, excurso no tempo; a partir do homem: que escreve, situa e,
ele só, constrói. «Deito-me ao comprido do barco que a corrente leva e vejo
passar ramos verdes, brancas nuvens, céus de azul e pérola, aves prodigiosas.
Cai sobre mim uma funda e dolorosa alegria», DMO, 232.
In «O Essencial sobre José Saramago», de
Maria Alzira Seixo, Colecção Essencial (n.º 33), Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, Novembro de 1987 (1.ª edição).
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