José Cardoso Pires – foto encontrada em https://aralumiar.wordpress.com
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Só agora, dezoito horas e catorze minutos, chegam os jornais
da tarde, e faço votos que com notícias de bom tempo. Oxalá. Para honra e
glória do melhor ganso da época, é indispensável que a criadita me traga um bom
Diário de Lisboa ou um bom Diário Popular que não me falem de chuva
nem de vento forte e ainda menos de trovoadas. Indispensável, está em jogo um
pacto de rebuçados. E estou eu, que também conto no pacto.
O cauteleiro montou a banca dos jornais numa das mesas à
entrada do café, e daqui, dali e dacolá começam a surgir os clientes de todos
os dias. Além deles, vêm os de fora, os caçadores que andaram a passear e a
visitar as tascas como turistas. Cruzaram-se nos mesmos sítios, ouviram as
mesmas pessoas, dentro em pouco já se falam. Quando se encontrarem ao jantar,
na sala do rés-do-chão, vão fatalmente trocar impressões sobre a lagoa com os
dados que lhes foi possível juntar e em seguida hão-de passar aos cães e às
pólvoras e, por vezes, a problemas de leis. Conheço a cantiga. E tu despacha-te,
criadita. Esse diário da tarde é importantíssimo para o nosso pacto, os outros
caçadores que se lixem. Seja cão se merecem que a gente se preocupe com eles.
Pelo que anuncia o jornal, tudo vai correr amanhã na melhor
ordem. Bancos de nevoeiro na costa meridional – não nesta, o diabo seja surdo
–, pequena descida de temperatura e o clássico vento moderado que, para cúmulo,
sopra de noroeste. Nada mau. Tenho muita pena dos respeitáveis galeirões desta
nobre e progressiva terra, mas está escrito. Escusado tentarem fugir para o
mar, porque o vento vem contra eles, nem essa salvação lhes resta.
Estendo-me na cama a ler o jornal. Em poucos minutos está
visto e deixa-me os dedos sujos de tinta, comprometidos por uma negrura baça de
chumbo. É o suor, penso; o amargo e penoso suor de umas folhinhas que nasceram
de apreensivos redactores e passaram por cadeias sucessivas de repartições,
tesouras, adiamentos, sustos, até serem espremidas nas pesadas rotativas.
Esfregando o polegar no indicador, sentimos escorrer o esforço, o fungo quase
imperceptível que reveste e que alisa os altos e baixos da nossa consciência.
São jornais sem sobressaltos, é o que se pode dizer deles, lendo-os. E é o que
eles nos dizem a nós, suando. Foram tão escorridos, tão lavados pela Censura, que
sujam as mãos.
Este, em particular, vem exausto. Mensageiro maltratado mas
convencido (em artigos de fundo e notas do dia) do seu Valiosíssimo Papel de Órgão
da Informação nas Estruturas Nacionais, chegou à Gafeira muito composto de bom
senso e com a autoridade de ter preenchido as vinte e quatro páginas que lhe
competem. Chegou cansado; sem voz, pode dizer-se.
Abre-se e pouco adianta, a não ser para os desconfiados
leitores das entrelinhas. Mas, vá lá, mal ou bem sempre traz um prometedor
boletim meteorológico. Esperemos que não falhe. Que, ao menos, não seja tão
desastrado como certas previsões da NASA – lembro-me eu, deparando com a
fotografia de Edwin Aldrin a sorrir a duas colunas da primeira página.
«O Delfim», romance de José Cardoso Pires, Moraes Editores,
Lisboa, Outubro de 1978 (8.ª edição).
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