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Eis o que
se passou: Calígula saíra do teatro. Uma liteira esperava-o para levá-lo ao
palácio pelo caminho mais longo, entre duas alas de guardas. Mas Vinício
disse-lhe:
– Vamos
pela galeria, que leva menos tempo. Creio que os jovens gregos estão lá à
espera, perto da entrada.
– Muito
bem, vamos! – disse Calígula.
A
multidão tentou segui-lo, mas Vinício ficou para trás e repeliu-a.
– O
imperador não quer que o incomodem – gritou ele. – Para trás!
Ordenou
aos guardas que fechassem as portas.
Calígula
aproximou-se da galeria. Cássio avançou e saudou-o:
– A
senha, César?
– Hem?
Ah!, sim, a senha! Vou dar-te uma linda hoje: «Velho de saias!»
Por trás
dele «o Tigre» perguntou:
– Sim? –
Era o sinal convencionado.
– Sim! –
disse Cássio, puxando da espada e ferindo Calígula com toda força.
Queria
abrir-lhe o crânio até ao queixo, mas, com a fúria, errou o golpe e atingiu-o
entre o pescoço e a espádua. O alto do esterno recebeu toda a violência da
estocada. Calígula, cambaleando de dor e de surpresa, olhou em redor com um ar
alucinado, quis dar meia volta para fugir. Mas Cássio, rápido, antes que ele se
voltasse, atacou-o de novo, fendendo-lhe a mandíbula. Depois «o Tigre»,
perseguindo-o, abateu-o com um golpe ao lado da cabeça. Ele ergueu-se
lentamente sobre os joelhos.
– Fere
outra vez! – gritou Cássio.
Calígula
ergueu para o céu um olhar de angústia:
– Ó
Júpiter… – suplicou ele.
– É para
já – gritou «o Tigre», decepando-lhe uma das mãos.
Aquila
deu o golpe de misericórdia – uma estocada profunda na virilha – e mais dez
espadas mergulharam ainda, para maior segurança, no ventre e no peito. Um
capitão chamado Bubo mergulhou a mão num ferimento aberto e lambeu os dedos,
exclamando:
– Eu tinha
jurado beber-lhe o sangue!
A
multidão apinhou-se. De repente deram o alarme. «Os germanos!» Os assassinos
não podiam enfrentar um batalhão inteiro de germanos. Precipitaram-se para o
edifício mais próximo, que era precisamente a minha primeira casa, utilizada
por Calígula para alojar os embaixadores estrangeiros que não queria hospedar
no palácio. Entraram pelo pórtico e saíram pela porta de serviço. Todos se
escaparam a tempo, salvo «o Tigre» e Asprenas. «O Tigre» fingiu não estar com
os assassinos e juntou-se aos germanos, para clamar por vingança. Quanto a
Asprenas, fugiu pela galeria, onde o alcançaram e mataram. Abateram da mesma
forma dois outros senadores que encontraram por acaso.
Mas era
apenas uma pequena parte dos germanos. O resto do batalhão invadiu o teatro e
fechou as portas, com a intenção de vingar com um morticínio em massa a morte
do seu herói. Daí, os gritos que eu ouvira. Ninguém na assistência sabia que
Calígula estava morto, nem sequer que haviam atentado contra a sua vida. Mas a
intenção dos germanos era bastante clara, pois davam palmadinhas nas suas
espadas e acariciavam-nas, falando-lhes como a seres humanos, como costuma
invariavelmente fazer quando se aprestam para derramar sangue. Não havia
salvação possível. De repente, no palco, a trombeta deu o toque de «atenção»,
seguido das seis notas que significam «ordem do imperador». Mnester apareceu e
ergueu a mão. O tumulto acabou para dar lugar a soluços e gemidos abafados,
pois quando Mnester aparecia em cena era regra ninguém dizer palavra alguma,
sob pena de morte imediata. Os próprios germanos pararam no meio das suas
palmadinhas e carícias às espadas. A «ordem do imperador» transformava-os em
estátuas.
Mnester
gritou: «Ele não morreu, cidadãos. Não morreu! Os assassinos arremessaram-se
sobre ele e fizeram-no cair de joelhos – assim. Mas ele ergueu-se – assim. As
espadas nada podem contra o nosso divino César. Ferido e ensanguentado como
estava, ergueu a augusta cabeça e afastou-se com o seu passo divino – assim –
entre as alas dos seus covardes assassinos, desconcertados. Os ferimentos
tornaram-se a fechar – milagre! Está agora na Praça do Mercado a falar aos seus
súbditos do alto da tribuna.»
Uma
aclamação formidável atroou os ares. Os germanos embainharam as espadas e
retiraram-se do teatro. A oportuna mentira de Mnester (sugerida por Herodes
Agripa, rei dos Judeus, o único homem em Roma que conservou o sangue-frio
durante aquela tarde fatal) salvara umas sessenta mil vidas.
A verdade
já era conhecida no palácio, onde provocava a mais completa confusão. Alguns
velhos soldados acharam que a ocasião era esplêndida para uma pilhagem em
regra. Cada porta tinha um trinco de ouro, fácil de arrancar com uma espada
pontiaguda e que valia seis meses de soldo. Fingiam pois que andavam à procura
dos assassinos, aos gritos de «Morram! Morram! Vinguemos César!» Ocultei-me
atrás de um cortinado. Entraram dois soldados. Descobriram os meus pés por
baixo.
Saí e
atirei-me de rosto contra o chão.
– Não me…
me… matem, senhores – supliquei. – Eu n… n… não t… t… t… tenho nada com a coisa!
– Quem é
este velho senhor? – perguntou um dos soldados, novato no palácio. – Não parece
perigoso.
– Como,
não sabes? É o irmão aleijado de Germânico. Um rico tipo. Nada mau. Levanta-te,
Cláudio, não te farão mal.
Fizeram-me
descer com eles ao salão de festas, onde os sargentos e os caporais estavam em
conselho de guerra. Um jovem sargento, de pé sobre uma mesa, agitava os braços,
gritando:
– A
República que se dane! A nossa única esperança é encontrar um novo imperador.
Não importa qual, contando que possamos convencer os germanos a aceitá-lo.
– Incitato – propôs alguém a rir.
– Antes
ele que ninguém. É preciso descobrirmos alguém imediatamente, para aclamar os
germanos, senão arrasarão tudo.
Os meus
dois guardiões abriram caminho, arrastando-me consigo.
–
Sargento!, olha o que temos aqui! Isto é que é sorte. É o velho Cláudio. Porque
não o velho Cláudio como imperador? É quem há de melhor em Roma para isso,
embora coxeie e gagueje um pouco.
Aclamações,
risos, gritos de «Viva o Imperador Cláudio!»
– Como,
senhor! – disse o sargento. – Todos te supúnhamos morto. Erguei-o, camaradas,
para que o vejamos.
Dois
grandes caporais agarraram-me pelas pernas e escarrancharam-me aos ombros:
– Viva o
Imperador Cláudio!
–
Ponham-me no chão! – gritei furioso. – Ponham-me no chão! Não quero ser
imperador! Recuso-me a ser imperador. Viva a República.
Mas eles
limitaram-se a rir:
– Essa é
boa! Diz que não quer ser imperador. Modesto, hem?
– Dêem-me
uma espada! – gritei. – Prefiro a morte.
Messalina
correu para nós.
– Por
amor de mim, Cláudio, faz o que te pedem. Por amor do nosso filho. Eles
matam-te, se te recusares. Já mataram Cesónia. Agarraram a filhinha pelos pés e
fizeram-lhe saltar os miolos contra um muro.
– Tudo se
passará bem, senhor, logo que te acostumes – disse um soldado, sorrindo. – Não
é assim tão desagradável, a vida de um imperador.
Não
protestei mais. Para quê lutar contra o destino? Carregaram-me pelo pátio de
honra, cantando o hino ridículo composto para a subida ao Poder de Calígula:
«Germânico voltou, eis o fim da nossa miséria.» Pois eu também me chamo
Germânico. Forçaram-me a pôr a coroa de folhas de carvalho feita de ouro, que
pertencia a Calígula e fora arrancada às mãos dos saqueadores. Para conservar o
equilíbrio, tinha de me agarrar com toda a força aos ombros dos caporais. A
coroa ficara-me de banda, sobre uma orelha. Sentia-me perfeitamente ridículo. Assemelhava-me
a um criminoso que levassem para a execução. As trombetas entoaram a Saudação Imperial.
Os
germanos voltavam-se lentamente na nossa direcção. Estavam agora cientes de que
Calígula morrera de facto. Tinham-no sabido por um senador que viera ao seu
encontro vestido de luto. Furiosos por terem sido ludibriados, haviam querido
voltar ao teatro, mas o teatro estava vazio; só podiam vingar-se sobre os
guardas, mas os guardas estavam armados. O toque das trombetas decidiu-os
afinal. Precipitaram-se para mim, gritando: «Hoch! Hoch! Viva o imperador Cláudio!» Começaram
freneticamente a oferecer as suas azagaias ao meu serviço e a tentar atravessar
a multidão dos guardas, para virem beijar-me os pés. Gritei-lhes que ficassem
onde estavam; eles obedeceram, prosternando-se à minha frente. Fui levado em
triunfo à volta do pátio.
Mas quem
poderia adivinhar os pensamentos e lembranças que me passavam pelo espírito
naquelas circunstâncias extraordinárias? Pensava na profecia da sibila, no
presságio do lobo, nos conselhos de Pólio, ou no sonho de Briseis? No meu avô e
na liberdade? No meu pai e na liberdade? Na vida e na morte dos meus três
predecessores imperiais: Augusto, Tibério, Calígula? Em tudo aquilo a que eu
ainda me arriscava, da parte dos conspiradores, do Senado, dos batalhões da
Guarda que tinham ficado no acampamento? Em Messalina e no nosso filho ainda
por nascer? Na minha avó Lívia, que eu prometera deificar, se me tornasse um
dia imperador? Em Póstumo e Germânico, em Agripina e Nero? Em Camila, o meu primeiro
amor?
Não,
nunca adivinharão o que me passava pela cabeça. Mas vou ser franco e direi a
verdade, embora a confissão me cubra de vergonha. Pensava: «Eis-me, pois,
imperador. Que tolice! Mas ao menos poderei fazer com que leiam os meus livros.
Audições públicas perante uma numerosa assistência. E sem contar que são bons
livros – trinta e cinco anos de assíduo trabalho. É de justiça, apenas. Para
encontrar ouvintes, Pólio dava banquetes dispendiosos. Era no entanto um
excelente historiador e o “último romano”. A minha História de Cartago está cheia de anedotas divertidas.
Estou certo de que agradará.»
Eis o que
eu pensava. Pensava também em todas as ocasiões que teria, como imperador, de
consultar os arquivos secretos e saber exactamente o que se tinha passado em
tal ou tal circunstância. Quantas histórias embrulhadas poderia eu destrinçar!
Que sorte maravilhosa para um historiador! Como acabais de ver, aproveitei bem.
E só muito raramente recorri ao privilégio, que tem o historiador, de imaginar
conversas de que apenas conhece o fundo.
In «Eu, Cláudio Imperador», de Robert Graves (a partir da autobiografia de Tibério Cláudio, com tradução de Rogério Petinga), Livraria Bertrand, Amadora, Fevereiro de 1979 (1.ª edição).
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