![]() |
Fotografia retirada de http://www.ivoandric.org.rs/html/andric_e.html
|
Quando o alcaide viu a enorme
pilha de livros, ainda por cima em várias línguas estrangeiras, os inúmeros
manuscritos e notas, deixou-se possuir de tanto horror e cólera que decidiu,
sob sua própria responsabilidade, prender o proprietário e mandá-lo com os seus
livros e papéis para Constantinopla. Nem a si mesmo conseguia explicar por que
razão os livros, especialmente os estrangeiros, e em tão grande número,
suscitaram nele tão grande ódio e raiva. Mas esse ódio e raiva não tinham
necessidade de explicação, amparavam-se e cresciam a par e passo. O governador
estava convencido de que não se enganara e de que desferira um golpe certeiro.
A notícia da prisão do filho de
Tahir-Paxá, inquietou muita gente importante, sobretudo entre o pessoal da
justiça. O próprio juiz-mor, homem culto, idoso, amigo de Tahir-Paxá, foi falar
pessoalmente com o alcaide. Expôs-lhe todo o caso, isto é, explicou-lhe que o
rapaz era sem mácula, que pela sua vida podia servir de exemplo de bom rapaz e
de verdadeiro muçulmano, que caíra numa espécie de melancolia e de exaltação em
consequência de amores infelizes, que se dedicava inteiramente à ciência e aos
livros, e que se talvez tivesse nisso exagerado, devia considerar-se isto antes
uma doença do que uma acção perniciosa e mal intencionada, e que ele merecia
atenção e piedade e não perseguição e castigo. Este caso era, com toda a
clareza, um grande equívoco. Do que Kâmil se ocupava era a história, a ciência,
e a ciência não faz mal a ninguém. Mas todos estes argumentos anulavam-se contra
a teimosia e a desconfiança do burocrata.
– Não quero, meu Senhor, cansar a
cabeça com esse caso. Eu da História ou seja lá o que for, não conheço. Cá pr’a
mim, era melhor que ele também não a conhecesse nem procurasse conhecer o que
faziam os Sultões de antigamente, mas sim que obedecesse ao que o Sultão de
hoje manda.
– Mas é a ciência, são os livros!
– interrompeu-o, desesperado, o juiz, que por experiência sabia quão nocivas e
perigosas para a sociedade e para o indivíduo podem ser as pessoas tacanhas,
que, por serem limitadas, acreditam infinitamente na sua inteligência, na sua
perspicácia e no acerto de todos os seus julgamentos e de todas as suas
conclusões.
– Pois, são os livros que lhe
fazem mal! O Djem-Sultão! O pretendente! A luta pelo trono! A palavra foi dita,
e uma vez dita nunca mais pára, mas vai para a frente e, andando, cresce e
transforma-se. Não fui eu quem disse o que foi dito, mas ele; e ele que
responda por isso.
– Ora, muitas vezes imputam às
pessoas o que nunca aconteceu! – tenta o juiz, novamente, defender o jovem.
– Se foi acusado injustamente e
caluniado que se lave e será limpo. Quanto a mim, eu livros não leio nem quero
pensar pelos outros. Cada qual que pense por si. Sou eu que tenho de me
preocupar por causa dele? Onde mando eu, cada um tem de prestar atenção ao que
diz e ao que faz. Eu só conheço uma coisa: a ordem e a lei.
O juiz levantou a cabeça e
olhou-o severamente e com um ar reprovador.
– A mim parece-me que é isso que
todos nós defendemos.
Mas o homem possesso já se não
deixava nem intimidar nem parar.
– Sim senhor, a ordem e a lei! E
por minha fé, por minha dedicação ao Sultão, se alguma cabeça sair por cima
disso, eu corto-a, nem que seja a do meu único filho! Sobre isto não admito a
mínima falta, nem que seja essa erudição suspeita do tal jovem senhor.
– Este caso podia ser esclarecido
e decidido aqui mesmo.
– Não senhor. Lei é lei, e essa
não manda que o procedimento seja esse, mas sim como eu mandei fazer. Falou dos
Sultões e dos negócios imperiais, pois que responda por suas palavras perante o
Imperador. E para isso há Istambul, é lá que deve explicar o que leu, o que
escreveu e o que andou a dizer por aí. E os de lá que resolvam isso. Se for
inocente, nada tem a temer. (…)
In «O pátio maldito» (Prokleta
Avlija), de Ivo Andrić (tradução do servo-croata de Lúcia e Dejan
Stanković), Cavalo de Ferro Editores, Lisboa, Maio de 2003 (1.ª edição).
Sem comentários:
Enviar um comentário