![]() |
Knut Hamsun - fotografia retirada de revistafinismundi.blogspot.com |
(…) O sol implacável flameja a 40
graus centígrados; céu e terra vibram neste ar abrasado que nenhum verdadeiro
sopro de vento acode a refrigerar. O Sol parece um brejo de fogo.
Tudo é calmo em volta das
edificações; somente vem do grande barracão de madeira, que serve de cozinha e
refeitório, um zunzum de vozes e movimentos apressados: o dos três cozinheiros
trabalhando na maior azáfama. Queimam erva em enormes fornos e o fumo sai em
espirais da chaminé, de envolta com chamazinhas e faúlhas. Os alimentos assim
preparados são metidos em tachões de zinco e estes postos sobre carroças,
atrelam-se em seguida os burros, e por fim lá vão os três homens pela pradaria
fora com as suas vitualhas.
O cozinheiro é um Irlandês,
homenzinho atarracado, dos seus quarenta anos, cabelo grisalho e porte militar.
Anda meio desnudo; a grande camisa aberta à frente patenteia-lhe o tórax, amplo
como mó de moinho. Todos ali o tratam por Polly, por causa do seu rosto, que se
assemelha à cabeça de um papagaio.
Polly foi outrora soldado, num
dos fortes lá para o Sul; tem o culto das Belas-Letras e sabe ler. Eis o motivo
por que conserva consigo uma compilação de canções e também um número antigo dum
jornal. Estes tesouros, ninguém mais tem o direito de lhes tocar; guarda-os
numa prateleira da cozinha, para os ter sempre à mão durante as horas de ócio;
e compulsa-os com assiduidade.
Ora o Zaqueu, seu lastimável compatriota,
que é muito curto de vista e usa óculos, apoderou-se um dia do dito jornal. Não
vão oferecer ao Zaqueu qualquer livro comum, onde os minúsculos caracteres se
baralhariam, inextricáveis, sob o seu olhar; em compensação, experimenta
verdadeiro prazer em ter na mão o jornal do cozinheiro para ir lendo, de seu
vagar, as belas maiúsculas dos anúncios. Mas o cozinheiro, tendo dado
imediatamente pelo roubo do seu tesouro, foi direito ao Zaqueu, que lia
estendido sobre o grabato, e apreendeu-lhe com ímpeto o que era propriedade
sua. Travou-se então entre os dois homens uma briga veemente e insultuosa. (…)
In
«Zaqueu e “Polly”, o cozinheiro», livro de contos de Knut Hamsun (tradução de César
de Frias), colecção «Mosaico – Pequena antologia de obras-primas» (n.º 14), com
direcção literária de Manuel do Nascimento, Fomento de Publicações, L.da,
Lisboa, s/d.
Sem comentários:
Enviar um comentário