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As mulheres andaram todo o dia de credo na boca, mas não choveu, nem borrifou.
As nuvens enrolaram-se e
desfizeram-se, caminhando ora ao sul, ora ao norte, sem deitar pinga. O sol
fora de trovoada, sufocando os ceifeiros, como se trabalhassem na câmara de um
alto-forno, mas os trovões não acordaram o silêncio da Lezíria.
Até ao sol-pôr aquela dúvida tomou
os ranchos do mesmo abatimento.
Agora o Sol já abalou e a chuva
ainda não veio. A ceia é menos amarga que o almoço e o jantar – a malta ganhara
um dia inteiro sem descontos. Aquela certeza empresta-lhes coragem.
Não há ordem do patrão para armar
«brincadeira» e os ceifeiros invadem o barracão, desenrolando as esteiras, onde
estendem os corpos amolentados pela fadiga. Se o consentimento viesse, ainda
lhe dariam um jeito, que a dança sempre esperta energias e adormece
pensamentos.
Alguns a preferem ao vinho - mas o
vinho também não entra naquela emposta. Mesmo se tirassem à tripa, ia de mal
aquele que usasse da pinga. O patrão quer os alugados leves de mão e direitos
de cabeça.
A ceifa tem de ir a galope, senão
chovem os quartéis suspensos e as represálias - lá se vai uma hora de sol ao domingo
e a licença de um dia, se algum precisa.
Por isso alguns ceifeiros se
deitaram nas esteiras, entretendo os olhos com o balouçar das teias de aranha
que afestoam o travejamento carunchoso do barracão. Outros ficaram à porta a
conversar nas mais diversas coisas da vida. Aproveitando o círculo de luz
frouxa do candeeiro, as mulheres remendam as saias e as blusas esfarrapadas.
As palavras que trocam mal passam
dos lábios; parecem recear que a noite acorde e a trovoada estale.
Os mais novos juntaram-se a um lado
e olham-se mais do que falam. Os desejos emudeceram-nos. O amor para eles só
conhece factos. É por isso que alguns estão deitados; nem conversam à porta.
É por isso também que lá fora, na
negridão da noite, se movem vultos e se ouvem gemidos.
Os que ficaram, só olham e não
falam, porque se lembram dos vultos que se movem na noite e dos gemidos que não
ouvem, mas adivinham.
Pernas cruzadas, onde o bandolim se
encosta, um ceifeiro vai dedilhando as cordas e pisando as escalas.
Solta-se dele uma música tremida,
como a soluçar. Os outros pensam que, se o patrão desse ordem, ali mesmo se
armava «brincadeira». Até se baila na cabeça de um tinhoso.
E talvez não sentissem as ferroadas
das melgas e dos mosquitos que invadiram o barracão, às nuvens, e não lhes
deixam sossegar as mãos a sacudi-los. Aquele zuído diz-lhes que as sezões não
vêm longe e os quartéis parados pouco tardam.
O anúncio fica a cobrir os
pensamentos e as palavras, amodorrando os alugados.
Eles não sabem se vem chuva, mas
sabem que a malária, pelo menos, não falta. É tributo sagrado a pagar todos os
anos à Lezíria. Quando pegam nas foices, têm de contar com as tremuras daquele
frio nascido dentro deles e que os sacode, como nordeste a ramos de salgueiro.
Aquela vida só conhece uma certeza – as sezões. E se as mãos não estagnam a espantar os mosquitos e as melgas, os
cérebros não esquecem que a paga do tributo vem breve.
O barracão tem as goelas abertas e
as nuvens entram sempre. O zuído vai subindo, como cheia grande a galgar nos
campos.
Aos ceifeiros parece-lhes que cobriu
a música que o bandolim soluça e consome as palavras que trocam entre si. Só
ouvem aquele som penetrante que lhes verruma a cabeça e os nervos estafados,
para os aparafusar a um destino certo. Ali têm de ficar grilhetados à certeza
que aos poucos se agiganta e os domina. A cada instante o zuído é mais poderoso
e o seu eco mais distinto.
– São como terra!...
– Dá-se-lhes aí uma jantarada de
fumo que até se amolam.
– São piores que sarna!... Praga
danada!
Dentro em pouco uma fogueira
crepita, no meio do barracão. O fumo sobe, penetrando tudo, pela água que
atiram ao brasido.
Os ceifeiros tossicam, envolvidos
por aquela bruma que abre clareiras nas nuvens dos mosquitos, e vêm para a rua
limpar os olhos ardentes.
Picam em grupos, a assistir ao
erguer do fumo que acinzenta cabides e alforges, esteiras e mantas.
A luz é um sinal de farol a gritar
no nevoreiro que se não dissipa.
– Eh,
gente!... Eh, gente!...
Os brados chegam às motas onde os
rabezanos conversam.
– Lá está aquele a juntar o rebanho!
Tem medo que fique alguém fora da malhada!...
E os rabezanos riem.
Estes já não afugentam os mosquitos,
seus companheiros para a vida inteira. E os gaibéus são outra gente que não
tratam por camaradas.
Se não fossem eles, mais braços da Borda-d’Água
encontrariam trabalho na Lezíria. Os patrões querem pessoal que não tenha
domingos e se alimente de jornas baixas.
Por isso as mondas e ceifas são
feitas por gaibéus e carmelos. E os rabezanos procuram nas fábricas e nas
descargas dos cais o que o campo não lhes dá agora. Ainda bem, pensam muitos.
Eles não podem olhar como camaradas
os gaibéus e carmelos.
– Eh,
gente!... Eh, gente!... Na
mota, os homens riem.
Os ceifeiros voltaram a estender nas
esteiras os corpos afadigados e a tosse contaminou-os.
As portas ficam fechadas e o fumo
sai aos poucos pelas suas fendas e pelas frinchas do telheiro de zinco. O
ambiente fica carregado e penetrou nos pulmões dos alugados.
O cheiro acre do fumo juntou-se ao
suor dos corpos, empastado nas camisas e nas blusas.
De todo o rancho só faltam os três
rapazes que dão a água e fazem a respiga, cujas esteiras continuam enroladas ao
canto do barracão. O capataz já jurou que os não deixava entrar e decidiu meter
as trancas às duas portas desmanteladas, por onde o fumo se vai libertando.
– Cá dentro não põem eles o pé. Quem
quer galderice, o corpo é que paga. Uns fedelhos e ainda fora... Não faltava
mais nada. Juntaram-se para aí a malandrar e amanhã não há quem os faça largar
a manta. Uns fedelhos... Pois ficam ao relento, que é para aprenderem!
E deixou-se cair na esteira,
estendida junto à porta. Cobre-se com a manta felpuda e mira, de esguelha, a
ceifeira dos seus desejos. Mas ela está de costas voltadas e tem à sua ilharga
a outra de saia rasgada com mancha de sangueira pisada.
– Raio de coisa!...
O ceifeiro desdenhado, lá do seu canto, espia as cachopas, à espera que alguma se descomponha no descuido do sono. O Pananão gostaria de arranjar mulher que lhe desse carinhos, sabe trabalhar como poucos, é homem como os outros.
In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.
O ceifeiro desdenhado, lá do seu canto, espia as cachopas, à espera que alguma se descomponha no descuido do sono. O Pananão gostaria de arranjar mulher que lhe desse carinhos, sabe trabalhar como poucos, é homem como os outros.
In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.
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