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Em geral nestas idades principia a demência e os problemas acalmam
enquanto
eu me indignava com o plátano da cerca a revelar baixinho
–
Não permitem que converse contigo
de
modo que inclusive no plátano silêncio, o bispo não deitado, de joelhos contra
a porta, com a casa inteira atrás dele, subitamente inútil, não mencionando o
recheio que de um momento para o outro não pertencia a ninguém, o espelho
desocupado, o armário dos fatos
–
Já não presto pois não?
o
bispo um sapato calçado e um sapato descalço e os dois num ângulo impossível,
não se calcula do que os defuntos são capazes, meu Deus as ideias que fazemos
dos mortos, se as bailarinas do senhor Figueiredo finadas dançariam melhor,
roçando o tecto com o tornozelo numa energia sem fim, porquê a minha mãe, pai,
o que o interessou nela e o meu pai pasmado diante das fotografias nos cartazes
da entrada com o nome das artistas por baixo, o meu pai
–
Mostrem
e
a recuar mal o porteiro
–
Não queremos pretos aqui
desaparecido
com os restantes portugueses nos aviões e nos navios de Luanda, depois de
impingir aos polícias o relógio, as chaves da casa, os talheres, lembro-me de
um jarrão embrulhado em jornais e de fotografias em molduras de loiça,
lembro-me do pânico, da pressa e dos assaltos às lojas, do petróleo a arder
sobre os corpos mestiços, lembro-me do meu pai a chegar do Cacuaco, da minha
mãe substituindo botões e da ilusão de eternidade que a caixa da costura me
dava, todos aqueles compartimentos, todas aquelas agulhas, olhava-a quase em
paz, esquecida dos musseques e das garrafas de petróleo, a certeza que
durávamos para sempre e nenhum mal acontecia, voltamos a Moçâmedes, diante do
sossego das ondas e das contas dos búzios, se os encostasse à orelha o
silêncio, o que recordo melhor de África é o silêncio e a minha mãe a coser,
que harmonia nos gestos, que vagar a consolar-me, cortar a linha, certificar-se
da perfeição do trabalho, continuar, a sombra da acácia amarela, a minha vida
amarela, o meu contentamento amarelo, eu, aposto que amarela, a interrogar as
vozes
–
Sou amarela não sou?
ondas
amarelas, areia amarela, coqueiros amarelos, mal o porteiro da fábrica, da
modista, do escritório
–
Não queremos pretos aqui
o
meu pai contornou o quarteirão no sentido das traseiras e aninhou-se entre
caixotes conforme costumava aninhar-se numa moita, com granadas no cinto, para
emboscar os portugueses, escutando à distância a mina que uma palanca, desviada
da manada, pisou e o planeta inteiro um sacão, o director da Clínica
–
Como vamos nós?
a
manejar o agrafador e a picar-se num salto, contemplando a pontinha de arame
enterrada no dedo, a extrair a pontinha e a chupar a falange, horrorizado com
uma mancha lilás, o director da Clínica reduzido ao dedo que a enfermeira
desinfectava
–
Vai doer um niquito
com
uma bola de algodão e um líquido turvo, o director da Clínica
–
E se não faz efeito?
soprando-lhe
em cima enquanto a enfermeira o segurava numa repreensão branda
–
O senhor director há-de ser sempre um menino
e
os meus pais, depois do agrafador, sem confiança nele, o dedo com o penso não
curvo como os outros, direito, a enfermeira a rolhar o desinfectante
–
Veja lá se repete a gracinha
In «Comissão das Lágrimas», romance de António Lobo Antunes, Obra
Completa (Edição ne varietur, de
acordo com a vontade do autor; revisão filológica de António Bettencourt),
Publicações Dom Quixote, Alfragide, Novembro de 2011 (6.ª edição).
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