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Continuas com medo?
e
não tenho vergonha de confessar, continuo com medo a Cadeia de São Paulo diante
dele agora, pessoas e pessoas não a fugirem, em corredores, em celas, tão
difícil reconhecer os presos por causa dos inchaços, não mencionando os
postigos estreitos, interrogo-me como a minha filha descobriu eu que me calei
ou quando muito gritos mudos que ninguém escutou, será que as árvores e os
objectos decidiram informá-la mas como se não saíram de Lisboa e por
conseguinte nada sabem de África, em relação a África, de resto, há momentos em
que duvido, palavra de honra, ter lá morado em tempos, desde há milénios este
tabuleiro e estes vidros opacos e no entanto cada autocarro uma camioneta do
Exército, cada automóvel um jipe da polícia, passei semanas a fio de açucena em
riste nem todas sob a chuva, é verdade, mas quase todas sob a chuva e
indiferente a ela dado que a Simone, dado que a Alice, Simone li nas
fotografias do cartaz, a Alice mais tarde, a querida Alice que veio de Lisboa
num barco de mulheres, cheio de lantejoulas e plumas, para os fazendeiros do
café, ao mencionar a querida Alice logo o avô cego e os passarinhos do pão, aí
vai ela carregando o joelho no sentido do quarto, há-de ser complicado
transportarmos uma coisa não nossa, e senhora da embaixada
–
O seu marido não pertence à Comissão das Lágrimas?
e
pesada, e incerta, se cuidava que a não via um pedido de ajuda não calculo a
quem, à Virgem que não nos fita, inquieta com a estreiteza do universo
–
Não há lá fora a sério?
e
não há lá fora, Senhora, há a Cadeia de São Paulo e o meu pai sentado com os
outros, a uma mesa comprida, com duas lâmpadas no tecto tombando, em charcos
pardos, sobre outros charcos pardos, inquirindo, sibilando, zangando-se com os
presos dos corredores e das celas, quem procuraste ontem, com quem falaste,
onde foste, as folhas da sua boca não
–
Ai Cristina
não
–
Como estás Cristina?
a
que inimigo escreveste contra a gente, porque pensavas matar-nos e mais
charcos, olhos que babavam saliva, murmúrios de palmeira sufocada, a seguir aos
murmúrios de palmeira um silêncio vazio em que um barco com uma lanterninha de
papel, perdão, um barco sem uma lanterninha de papel largava corpos na baía
onde o mar agitava sementes de avenca contra a janela, no seminário as avencas
o tempo inteiro nos caixilhos, advertindo
–
Não entristeças Deus
com
o da cama ao lado, mais baixo que as avencas
–
Dá-me
e
demasiados braços, demasiadas unhas, demasiado suor na sua nuca, nas costas,
ele a pensar, aterrado
–
Um dia destes Deus vai saber de certeza
porque
as avencas sabiam e não gostavam de mim, as avencas
–
És preto
numa
arrogância que não cessava, não cessava, a minha mãe de joelhos e ele incapaz
de consolá-la, ele preto
–
O seu marido não pertence à Comissão das Lágrimas?
ele
mandioca torcida nas esteiras, ele de pedra como em Lisboa, quase oitenta anos
de pedra, ele com a mãe, hoje a engordar o capim, na cozinha do chefe de posto
voltada aos girassóis e a seguir aos girassóis as mangueiras, em redor do
seminário eucaliptos a concordarem
–
És preto
o
chefe de posto branco, a esposa do chefe de posto branca, a minha mãe preta, o
meu pai preto que trabalhava num armazém a entregar os salários e não havia
salários, não pagaste o imposto, gastaste o que sobrava na cantina e os
palermas calados, nunca viu criaturas tão submissas, pedaços de calções,
pedaços de camisas, um ou outro chapéu de palha sem palha, a que desgraçado o
furtaste, gatuno, ele na Comissão das Lágrimas
–
Queres os portugueses de volta em Angola?
a
rapariga sem gengivas nem língua que só a pistola calou, não entendia a razão
de continuar a ouvi-la em Lisboa, o que fizeste para que eu te oiça em Lisboa a
não ser que o mar vos traga um a um, a missa no seminário às seis e um quarto
da manhã e ele gelado, oxalá ninguém conte a Deus, oxalá não venha aqui e
suspeite, Deus branco, como o chefe de posto e a esposa do chefe de posto, com
a colher de girar a sopa no fogão ao alto, estende as mãozinhas, ladra, e um
girassol a quebrar-se a cada golpe, inúmeras pestanas amarelas e a pupila de
verniz descobrindo-me de súbito
–
Mostraste?
In «Comissão das Lágrimas»,
romance de António Lobo Antunes, Obra Completa (Edição ne varietur, de acordo com a vontade do autor; revisão filológica
de António Bettencourt), Publicações Dom Quixote, Alfragide, Novembro de 2011
(6.ª edição).
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