O poeta Afonso Duarte
(Fotografia retirada de http://filosofia-extravagante.blogspot.pt)
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Coimbra, 9 de Outubro de 1938
– Dia de caça. De manhã nos montes e nas
barrocas de Valcanosa; de tarde nos campos do Mondego, primeiro no automóvel
por caminhos demoníacos, depois com o Afonso Duarte, nos arrozais, às
codornizes. Mas a grande hora, a hora única do dia, foi o momento em que o meu
companheiro, o Vasco, os cães, o automóvel e eu, de uma barcaça enorme,
recebemos a bênção da lua cheia. Montemor ao longe, em terracota, sobre um
renque de choupos. Um horizonte sem fim para onde o rio corria. A lua, vermelha
como um balão minhoto, pendurada no céu. E aquela luz mediúnica a penetrar tudo
e a projectar a realidade em transparência num ecrã distante. Nada que se possa
figurar em palavras. Silêncio puro. Silêncio e o Afonso na margem esquerda,
hirto, calado, irreal, como um deus antigo. Depois foi a chegada a terra, a
largada, e a estrada cortada subitamente. Mas isto agora é outra história. Uma
história das minhas, que mete pedra, terra, violência, pragas, força, e esta
vontade telúrica que vive em mim como o coração.
In
«Diário» (1.º volume), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Dezembro de
1989 (7.ª edição).
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