Cristóvão de Aguiar – Foto retirada
de http://www.bparah.azores.gov.pt
|
Regresso definitivo! Saio correndo
e vou perguntar aos outros passageiros. Não posso nem quero suportar a
irreversibilidade de um carimbo qualquer. Alguns deles encontram-se espojados
pelos sofás da sala de espera. Outros, pelo chão lustroso de cera. Poucos sentados
em meiples de napa preta. Aspira-se um ocre odor de suor, misturado com o
violento perfume de laranja. É Inverno. Talvez Dezembro. Há uma certa obrigação
de cada um contribuir para que o Natal se desentranhe em aromas
característicos. Tal quadra de neve açucarada!
Os passageiros. Abeirei-me de
alguns. E todos me declararam. O Menino Jesus ainda mija connosco aqui nesta
sala. Sem excepção – informaram-me também – somos todos passageiros em trânsito
neste salão de embarque. Eu pelos visto é que não. E logo me aconselharam. E eu
então dirigi-me ao funcionário de plantão ao carimbo. Questão de lhe untar as
mãos. O costume em todas as repartições. Num instante mudou os dizeres para os
de passageiro em trânsito. E eu que sempre me acautelo em comprar passagem de
ida e de volta! Desta vez, contudo. O estatuto de passageiro em trânsito
comporta os seus poréns. Mas apesar disso também se usufrui de inúmeras
regalias. Dorme-se descansado em todos os aeroportos do mundo. E anda-se em
trânsito pegado para um lado de lá qualquer. Fico esclarecido. Passageiro em
trânsito é a minha postura. Ajusta-se melhor ao meu estado de homem solto. Vou
falar com o despachante. Talvez não devesse ter permitido. A ele ou outro qualquer.
Não devia. Podia ter sido cintado com uma fita de aço tão inoxidavelmente
definitiva.
Antes tivesse seguido o teu
conselho, meu amor. O mar havia invadido o quarto de sonhar, arrastado os
fragmentos das fotografias. Bem que insististe comigo. Aproveita a maré e faz-te
ao mar. Podia até empreender a viagem clandestino. Servia a cama de barco. E
ninguém sequer sonhava. E nem haveria despachantes carimbando-me
definitivamente o pergaminho das emoções. Definitiva é a morte mais a sua
principal raiz que a pôs neste mundo para nos azucrinar. Mas sinto-me neste
momento de nervo murcho para fundas aventuras marítimas. Já raramente encontro
limões providenciais para trocar as voltas ao enjoo. Não será mesmo cobardia? E
depois, meu amor, como resistir à magia das estações de caminhos-de-ferro. Dos
aeroportos fervilhando de destinos cruzados e descruzados? Claro que não se
apagou em mim a atávica atracção pelas docas. Caíram em desuso, é certo. Desviou-se
o mar do campo magnético do nosso destino. Continuo esperando. Ele ainda há-de
capitanear o adormecido veleiro desta nossa aventura.
Haverá algum dos meus companheiros
de Ilha que não tenha, numa das enseadas do corpo ou da lembrança, um pequeno
cais de acostagem de contrabando de sentimentos, sobretudo se a Ilha escorre
tinta roxa da tela do horizonte? A doca e as velhas canções nocturnas. A voz do
vento. O mar galgando o paredão do quebra-mar. E o farol numa das extremidades
do molhe. Sempre de sentinela à serra de Água de Pau. E a sua luz avermelhada.
Espanca a escuridão molhada do bafo do mar! E como poderia eu deslembrar-me dos
teus cais, meu amor! Doces miniaturas das docas, quase de trazer ao peito num
fio enfiado de conchinhas! Apetecia-me agora acariciá-las entre os dedos
desertos. Ficaram-me para sempre tatuadas na pele interior de uma aventura. Ainda
me estonteiam, podes crer. E à minha velha agulha de marear.
In «Passageiro em trânsito – Novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai sempre acrescentando mais um conto», de Cristóvão de Aguiar, Colecção Garajau (n.º 20), Edições Salamandra, Lisboa, 1994 (1.ª edição).
Sem comentários:
Enviar um comentário