Foto retirada de
bancadadirecta.blogspot.com
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Arrumada a mala, e logo que o
comboio se pôs em andamento, puxei pelo meu Pascal. Les Provinciales. Mas li pouco. Comecei a pensar na ideia
fantástica que o bom do jansenista teve das viagens colectivas. Pois não é
realmente um achado isto de meter no mesmo carro trinta sujeitos que não se
conhecem mutuamente, e fazê-los andar juntos durante quatro horas? E então se
um desses indivíduos é aprendiz de violino e resolve estudar pelo caminho?!
Navegava nestas águas, e tirava as
consequências respectivas, quando cheguei.
A tragédia de um quarto vazio. A
tragédia de encher quatro paredes do sentido da nossa intimidade. Mas, afinal,
bastou abrir a mala, espalhar pelas cadeiras o pijama e a gabardine, e pôr em
cima da mesa a pasta dentífrica e o pente. Com mais um cobertor na cama e duas
toalhas limpas, considerei-me aninhado. Um homem é pouca coisa. O tacão da bota
ou a direcção da risca do cabelo podem resumi-lo.
Jantei e vim ver o velho oceano.
Vim olhá-lo cá do alto. Este Sítio é na verdade uma varanda de eleição. O mar,
contemplado dum mirante assim, tem uma perspectiva sem paralelo na costa
portuguesa. A fundura que ele é na consciência de todos vê-se daqui quase ao
natural. Àquela hora, carregado de luar como estava, a florir de segundo a
segundo a sua angústia numas ondas imaculadas, era o coração do mundo a pulsar
e a imensidade a sorrir.
Às onze e tal fui-me deitar. Dormi
mal. Um sono inquieto, meu. E apenas as sete bateram, lá estava o senhor Sol e
mandar-me cavar. Peguei no papel e vim. Mas creio bem que não posso trabalhar
neste lugar. Trata-se de fazer seguir um romance que trago entre mãos. Ora quem
é lá capaz de escrever o capítulo de um romance, de memória, num cenário
destes? Um romance é um edifício austero, sólido, construído na solidão do
escritório, a consultar fichas. Quando às vezes leio a qualquer amigo um
capítulo do que já fiz, a impressão que me fica é a de que se julga que tudo
aquilo eu o criei a mexer o dedo mindinho. Falo nos meus apontamentos, nas
horas e horas de trabalho rijo, a ordenar e a mondar material acumulado, e é
como se eu falasse da lua. Já nem me refiro à expressão, à poda beneditina aos
adjectivos, às mil picuinhas que são na obra o que os pontos são num vestido.
Para quê? Se não acreditam no principal!...
Mas acreditem ou não, a verdade é
só uma. Um romance é uma história que tem de se contar com o suor, a seriedade
e a segurança com que se conta a guerra das Duas Rosas. Ora eu, sentado neste
trono de luz e de brisas, estou em condições de muita coisa, menos de descrever
exactamente a morte de um senhor asmático que há-de morrer no meu romance.
Ainda assim vou tentar. Mas não creio. A olhar o mar lá no fundo, calmo e verde
como um jardim, o que me apetece é escrever destas maluqueiras, e pensar que há
lugares onde os milagres têm que acontecer, quer Deus queira, quer não. Que se
o D. Fuas Roupinho não tivesse vindo aqui dar o salto lendário, era o maior
bandido que o sol cobria no seu tempo.
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