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Sílvio, provavelmente, no meio da
rua ou nos cafés, já teria encontrado os verdadeiros poetas – os que, pelo seu
heróico inconformismo, mereciam a poesia. E procurava identificá-los entre a
grosseira multidão. Eles não poderiam ter a aparência de pessoas vulgares: um
olhar ausente, cabelos vaporosos, um corpo esguio e, certamente, debaixo do braço,
livros que não era necessário esconder. Sílvio entrava nos cafés e farejava à
sua volta. Qual deles seria um poeta? E por vezes ficava tão certo de ter
acertado que se sentava próximo de qualquer solitário de expressão longínqua,
esperando a todo o momento vê-lo anotar versos fortuitos, destes que brotam,
irreprimíveis, da mesa da solidão. Quando chegasse esse instante, dar-lhe-ia a
entender que compreendera. Que era um cúmplice. Que era um igual. E dir-lhe-ia
que também ele tinha um livro refugiado na gaveta, um livro que era por
enquanto um rolo de papéis aguardando um título e o milagre da sua libertação.
Um título? Mas não pensara já em chamar-lhe Estrelas
do Pântano? Uma capa com o seu nome ao cimo, Sílvio Mendoça, e por debaixo,
em caracteres amarelos sobre um sugestivo fundo negro, esse símbolo da sua
amargurada poesia: estrelas, estrelas do… pântano. Mas daí à concretização do
sonho! Quem sabe? Talvez já estivesse perto… Todos os meses amealhava umas
economias e em breve teria provavelmente o dinheiro suficiente para a edição. O
seu nome nos jornais, o seu nome gritado aos ouvidos empedernidos e surpresos
dos colegas! Mendoça era um nome repugnante, sugeria a esfoliação inflamada nas
costas do pai, que ele era obrigado, nos dias quentes, a ensopar com águas de
virtude, mas Sílvio imporia o nojo desse nome! Ele o faria reter aos ouvidos da
fama!
As coisas poderiam ainda acontecer
de outro modo: o desconhecido do café leria os seus poemas e, deslumbrado,
levá-lo-ia junto de um editor, convencendo-o a publicar as Estrelas do Pântano. Não seria preciso o dinheiro amealhado. Todos
falariam da descoberta de um jovem que levara timidamente os seus versos às
mãos de um mecenas. A cidade inteira, atónita, iria libertá-lo do cárcere da
repartição. Vive e sonha, gritavam as gentes, vive para a tua grandeza! As
mulheres a persegui-lo pelas ruas, tendo nos lábios flores roxas de amor e
martírios; os homens a apontarem-no à curiosidade respeitosa dos que o
procuravam para lhe entregar oferendas. Ah, não! Era sonhar demasiado; era
despedaçar-se, mais tarde, de encontro à realidade!
Efectivamente, regressava dessas
viagens pelo sonho com os nervos e os músculos exaustos. E então adormecia. No
dia seguinte, porém, nesse mesmo cenário do seu quarto, com o leito de ferro de
colegial, a mala de cânfora e a imagem da Senhora das Dores, sua madrinha,
repreendendo-o benevolamente, repetir-se-iam os desmandos da sua imaginação.
Mas era bom e fácil imaginar. Bastava estender os olhos pela avenida longa e
agitada, pela Universidade que furava o céu tranquilo, pela noite vasta. Em
qualquer parte e em qualquer instante encontraria o seu desconhecido. E ambos,
então, com as mulheres de cabelos vaporosos e lábios roxos, iriam ao encontro
dos ventos, dos sóis, do imprevisto.
In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).
In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).
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