Fernando Namora (fotografado por Gustavo de Almeida Ribeiro) |
– Pensas fazer alguma exposição em Coimbra?
Quem tinha feito a pergunta? Zé
Maria ouviu-a através do nevoeiro dos seus pensamentos. Exposições, livros.
Eles julgavam ser possível construir um mundo apenas com frases; e, no entanto,
todos eles tinham ou julgavam ter uma aguda consciência das realidades, da vida
tal como era. E acreditavam nela. Mas comportavam-se como crianças que levam os
sonhos até à Lua e estendem depois os braços para alcançá-los.
Marinho devia ter respondido com um
aceno de cabeça. Mas agora decidira-se a falar também:
– O meio não é para exposições,
suponho. Dizem-me que há por aí uns aficionados que compram quadros quando lhos
impingem a domicílio. Uns tipos que, evidentemente, não fazem distinção entre a
pintura e os jarrões que lhes enfeitam as salas de visitas. Mas compram, é o
que importa. Estudarei essa possibilidade. Você tem um cigarro, Luís Manuel?
Perdi o maço ao apear-me do comboio.
Júlio riscava o vidro da mesa com a
unha. Seabra aproveitou a oportunidade para insistir no seu tema:
– Sempre a questão da massa! O
problemazinho. É revoltante estarmos sujeitos a isto. Você, Marinho, consegue
realizar-se como artista pensando constantemente nessas questões do dia-a-dia,
como um merceeiro tem de pensar nas letras e nos prazos de vencimento?
O outro descaiu as pálpebras sobre
os olhos claros, a medir o interesse da pergunta. Numa voz incolor, respondeu
com lentidão:
– Faz-se o que se pode. Há coisas
mais importantes do que isso.
– Lastimável.
– Tu és irredutível, Seabra – disse
Júlio, e não se sabia até onde chegara a ironia e a que verdadeiramente quisera
referir-se.
A conversa escorregou logo depois
para o confronto entre a literatura e a pintura. Seabra achava que a missão de
um novelista era, de todas, a mais espinhosa e, ao dizê-lo, parecia insinuar a
alta e terrível missão a que deliberadamente se obrigara.
Luís Manuel assistia, com prazer
reconfortante, ao entusiasmo que os companheiros punham nos seus depoimentos e
ele próprio conseguiu atraí-los ao comentário sobre certas edições estrangeiras
que, um pouco a ocultas, haviam, enfim, chegado às suas mãos. Falando de
livros, já ele poderia impor-se à consideração de Marinho, visto que era sempre
o primeiro a adquirir as obras acabadas de chegar às livrarias da cidade. Não
tinha, evidentemente, tempo para as ler todas, mas sabia-lhes da existência, do
formato, da sedução exterior, podia mostrá-las nas fartas prateleiras da sua
casa. Os livros ofereciam-lhe um prazer quase carnal. Era a própria vida
condensada, acessível, fechada em volumes, que se transportava comodamente para
um recanto solitário, a vida que se palpava com as mãos e à qual era fácil
entregar-se ou negar-se, conforme lhe aprouvesse. Os seus dedos magros gozam o
contacto do papel, o rasgar das folhas, os primores da impressão, tal uma
mulher se delicia ao sentir sobre o corpo um tecido desejado.
In «Fogo
na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem
Martins, 1988 (14.ª edição).
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