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O livro nas montras! Agora podia acontecer fosse o que fosse, que nada mais importava. Embora toda a elaboração do livro, o entendimento com a tipografia, a revisão de provas, esse lento e ansioso crescimento de um sonho íntimo, cujo destino, no entanto, era ser exposto à claridade, houvesse sido feito em segredo – o pai, apesar disso, teria suspeitado já de alguma coisa? Às vezes, Sílvio julgava descobrir-lhe olhares significativos. E chegava a apetecer provocar-lhe uma censura, uma ironia, ou, quem sabe, uma palavra de espanto. «Fale! Fale, que não o temo!» Sílvio já podia suportar esse arrojo, visto que, daí a dias, o seu livro, um navio de velas soltas, o levaria à conquista de imprevistos portos. «Falem. Agora falem!» Nada o impedia também de deixar a repartição, ou a burguesa casa dos pais, ou a rapariga do bairro académico que troçava da sua persistência. Que valiam essas coisas, odiadas ou descoloridas, quando tudo o mais, a fama e a ventura, se lhe oferecia através da poesia?
O livro tinha uma capa azul-celeste
e não havia dúvida de que, fosse pela capa ou por outro subtil chamariz, se
destacava singularmente dos restantes volumes que o rodeavam. Quem se abeirasse
das montras, olhava-o em primeiro lugar. Isso era evidente. Ele bem reparara,
mais de uma vez, nas pessoas a afluírem às livrarias e ficarem uns momentos a
contemplar o livro, conquanto, por uma inexplicável reserva, nem o abrissem nem
lhe tocassem. Sílvio espiava, ora passando como por acaso rente às montras, ora
detendo-se um pouco no passeio fronteiro. Na livraria principal da cidade, onde
cavaqueavam os lentes, haviam posto dois exemplares lá dentro, bem à vista, no
escaparate das novidades, e Sílvio esperava todas as tardes, quando saía da
repartição, que eles já lá não estivessem. Mas estavam. Certamente o livreiro
satisfazia os compradores com outros exemplares armazenados nas prateleiras,
deixando ali aqueles, em exibição, para atrair novos clientes. Dias depois,
porém, o livro tinha desaparecido. Aflito, inquiriu de si próprio: esgotara-se?
Procurando melhor, descobriu que algum empregado inexperiente colocara por cima
da sua obra uma outra novidade literária. Um romancelho qualquer. Que fazer?
Deu umas voltas nervosas pela sala, simulando apreciar umas revistas, e, quando
achou que os empregados estavam distraídos, libertou o seu livro do opressor
que o ocultava. Quando saiu da livraria, à pressa, comprometido, não olhou mais
para ninguém; mas parecia-lhe que todos o observavam, que todos haviam reparado
no seu gesto de ladrão. Por isso as faces lhe ardiam, num fogo que aos outros
pareceria tremendamente suspeito.
Ainda não fora ao café. Não poderia,
nesses dias, enclausurar-se fosse onde fosse, quando lá fora, na rua, as
pessoas o acotovelavam, estonteadas, para o admirarem melhor; quando o livro,
oferecido aos olhos da cidade, precisava de ser amparado pelo seu carinho. Lá
chegaria a altura de voltar ao café, com um exemplar debaixo do braço, de modo
que Nóbrega bem lhe visse e pudesse, enfim, incitá-lo a esse encontro adiado
durante infindáveis meses.
In «Fogo
na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem
Martins, 1988 (14.ª edição).
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