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Seabra andava alvoroçadíssimo. Como
a revista era lida e ridicularizada pelos cafés do bairro universitário, ele,
orgulhoso e insensível às estúpidas graçolas, vestia agora uns coletes espalhafatosos,
que ninguém mais se lembraria de usar. O seu nome no corpo directivo da Rampa era um troféu. Tornava-se-lhe
necessária essa glória de ser distinguido na rua, mesmo que a curiosidade
começasse por ser despertada por uma banalidade tão formal como um colete.
Estimulado aos grandes gestos, retribuíra com um fato azul-marinho o busto que
o escultor lhe esboçara. Intimamente, esperava uma oportunidade de sugerir que
a reprodução dessa bela peça de escultura, talhada com vigor e frenesi, fosse publicada
no segundo número da revista.
Esse facto, naturalmente, tinha-lhe
feito desabar as desconfianças quanto à personalidade de Carlos Nóbrega. Não
havia dúvida de que o homem compreendera, enfim, a missão que se exige de um
artista. Por isso, massacrou meticulosamente os amigos do jornal e um dia pôde
chegar à pensão com a notícia desejada; cento e cinquenta escudos por mês e um
horário, nada abusivo, das nove da noite à uma da manhã. Nóbrega passaria a ter ao seu cargo a revisão de provas, a coordenação dos telegramas das agências e a
crítica aos esporádicos salões de pintura. Seabra galgara as escadas de
expressão triunfante e previra que o escultor desse largas ao seu
reconhecimento por tal prova de camaradagem. Preparara mesmo uma resposta
adequada: «Isso não tem nenhuma importância. Devemo-nos um sagrado auxílio mútuo.» Mas o escultor de modo nenhum ficara surpreso
ou comovido: sem largar os pincéis, dissera por fim:
– Sabe, por acaso, se eles estarão
dispostos a adiantar-me um mês de ordenado?
– Não sei, bem vê…
Seabra, para corrigir o desapontamento,
volveu a sua atenção para outros lados. Isabel estava de pé, de costas para a
luz da janela, contrafeita da posição fatigante. Pela primeira vez reparava que
a miúda se fazia rapidamente mulher. E bem jeitosa!
– Prometes… – disse-lhe. – Estás a
ficar um torrãozinho de açúcar…
Aquela rapariguita de corpo gracioso
a despontar... Já na aldeia, com a pastora da quinta do avô, ele tivera uma
inesquecível aventura. E esta gente de baixa condição não trazia complicações.
Voltou-se para Carlos Nóbrega, numa última tentativa de o forçar à gratidão:
– Digo-lhe que é o lugar mais
suportável do jornal. Eu, que tenho por lá passado os meus bocados…
E ficou-se por aí, certo de que os
outros saberiam interpretar as reticências: ele, como intelectual, tinha de ser
visita assídua desses meios.
Nóbrega, indiferente, limpava as mãos
a um trapo, depois de fazer sinal à rapariga para aliviar os músculos.
– … Se eu tivesse de escolher, isto
é, se estivesse no seu caso – insistia Seabra –, preferia, sem hesitações, o
lugar de redactor da noite. Durante o dia aparecem meninos com artiguinhos, e
amigalhaços que vêm falar da guerra e pedir umas notícias de compadrio. Quanto
ao ordenado, embora modesto, não ofende ninguém, não é verdade? E fica com o
dia livre para as suas coisas.
– Meu bom amigo: você está
perturbado com a ideia de que será preciso rogar-me desculpas por me ter
conseguido um emprego.
Os olhos de Seabra arregalaram-se
perante tão imprevisível comentário. Desapoiado, farejando uma situação
ridícula, sorriu indefinidamente, como se um sorriso fosse, só por si,
elucidativo. Dedicou ainda um aceno brejeiro à Isabelita – estava apetecível, o
diabo da garota! – e saiu, ajeitando com azedume as abas do colete.
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