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O chefe da redacção, um tudo-nada
vesgo, tinha servido na secretaria do Exército. Mas no seu porte não havia
sugestões marciais. Pelo contrário: era um homem frondoso, calmo, de cabelos
manchados de cinza, que punha em todos os gestos uma arrumação criteriosa. A
propensão para o escrúpulo e a ordem reflectia-se nos linguados que lhe saíam
das mãos, sempre limpos, sempre preenchidos por uma letra rendilhada.
Desprezava rancorosamente as máquinas de escrever e não consentia no jornal uma
única dactilógrafa. «Esses trastes fizeram-se para analfabetos. Nem só a boa
redacção basta para denunciar o escritor: é também preciso escrever com o seu
punho e escrever bem!» E, assim,
compunha os seus opulentos artigos com um aparo especial fornecido, em
exclusivo, por um estabelecimento da Baixa. Ordenava que lhe guardassem,
libertos de dedadas, os seus originais. «Hoje, neste século de espavoridos, não
há o respeito pela escrita. Vêem-se gatafunhos. E a escrita é o barómetro da
saúde dos espíritos! Eu queria ver os meus amigos com o meu professor
primário!... Mas têm as máquinas, pronto…» Na apresentação de Carlos Nóbrega não
dispensara a credencial decisiva:
– O senhor é dos tais?
Nóbrega começará a sua tarefa ainda
com uns restos de uma ideia muito romântica sobre o que fosse um jornal. Mas
acomodou-se como pôde. Revia as provas automaticamente e automaticamente
estendia os dedos para o telefone. Nos minutos vagos rabiscava desenhos ou
retratos dos colegas e pensava nos saborosos passeios nocturnos que o emprego
lhe roubara. O chefe da redacção, de resto, era afável, embora respeitasse as
hierarquias.
– O senhor habitua-se, conquanto
esta profissão tenha as suas dificuldades específicas. Específicas, entenda-me!
Tenho visto bom menino universitário vir para aqui com prosápias e não saber,
afinal de contas, alinhavar a notícia de um funeral…
Entre o chefe, que vinha de raspão
em algumas noites, e o administrador, um fuinha que fazia do jornal o seu lar
de todas as horas, existia uma ciumeira tempestuosa.
– Ou se serve a ele ou a mim! – bradava o fuinha. O chefe, mais comedido, não
traduzia os seus sentimentos.
No dilema de agradar a um ou a outro
estava o segredo da conservação dos empregados menores. O administrador tinha
sido, nos bons tempos, cocheiro e nessa qualidade prestara alguns serviços
memoráveis ao proprietário do jornal, não só de natureza política, mas também
amorosa. Firmando nesses laços de raiz, o ex-cocheiro era uma rocha ali dentro.
Quem viesse de novo devia saber equilibrar-se entre os dois abismos.
A Tribuna, como a maioria dos jornais de província, tinha uma vida
difícil; daí, não podendo recrutar jornalistas profissionais, ter de escolher o
seu estado-maior entre pessoas cuja principal garantia era a fidelidade à
empresa ou aos subsidiadores. Assim se explicava a presença do ex-sargento e do
ex-cocheiro nos postos de comando; mas esses bravos homens eram capazes de
todos os sacrifícios e a sua devoção pelo jornal compensava à larga alguns
deslizes intelectuais.
In «Fogo
na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem
Martins, 1988 (14.ª edição).
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