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Selma Lagerlöf (1858-1940)
(Imagem retirada de www.cavalodeferro.com)
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Passados
catorze dias da morte do senhor Arne, houve um par de noites de luar intenso e
claro. Ora, numa dessas noites, andava Torarin por fora, conduzindo ao luar.
Parava o cavalo de vez em quando, como se tivesse dificuldade em encontrar o
caminho. No entanto, não enveredou por nenhum bosque aprazível, mas pelo que
lhe pareceu ser uma vasta e aberta planície, na qual se erguiam pequenos montes
pedregosos.
Toda
a região estava coberta de uma neve branca e brilhante que tinha caído com
tempo sereno, de forma regular e homogénea, não em montões ou turbilhões. Tão
longe quanto a vista podia alcançar, só havia em redor a mesma planície regular
e os mesmos montes pedregosos.
–
Grim, amigo cão – disse Torarin, – se tivéssemos visto esta paisagem pela primeira
vez esta noite havíamos de julgar que estávamos a atravessar uma extensa
charneca. Mas decerto nos admiraríamos que o solo fosse tão regular e o caminho
não tivesse pedregulhos nem covas. Mas que região é esta, diríamos nós, onde
não há valas nem vedações, nem galhos ou arbustos sobressaindo da neve? E por
que não vemos ribeiros nem riachos, que, aliás, costumam traçar sulcos negros
por sobre os campos brancos mesmo com o frio mais agreste?
Torarin
deleitava-se com estes pensamentos, e até Grim os achava agradáveis. Não se
mexia do seu lugar na carroça, onde ia deitado, abrindo e fechando os olhos.
Precisamente
quando Torarin terminava a sua peroração, passou por uma haste alta, à qual
estava amarrada uma bóia.
–
Se fôssemos forasteiros neste lugar, Grim, amigo cão – disse Torarin, –
perguntar-nos-íamos decerto que espécie de charneca era esta, onde colocam
marcas semelhantes às que se usam no mar. «Será que isto aqui poderia ser mesmo
o mar?», diríamos finalmente. Mas iríamos achar que isso era impossível. Será
que este solo, tão estável e seguro poderia ser apenas e somente água? Será que
todos esses montes rochosos, tão firmes e juntos, seriam apenas ilhéus e
recifes, separados por ondas agitadas? Não, não poderíamos acreditar que fosse
possível, Grim, amigo cão.
Torarin
ria-se, mas Grim permanecia deitado, imóvel e sereno. Continuou a conduzir, até
dar a volta a um alto monte rochoso. De repente gritou, como se tivesse visto
algo de estranho. Fingiu-se muito admirado, soltou as rédeas e juntou as mãos.
–
Grim, amigo cão, e tu que não querias acreditar que isto era o mar! Agora já
vês o que é. Levanta-te, e vais ver que aqui, à nossa frente, está um grande
barco! Não querias reconhecer as marcas marítimas, mas isto não podes tu
ignorar. Agora, já não podes negar que estamos a andar sobre o mar.
Torarin
parou uns instantes e contemplou um grande barco, imobilizado no meio do gelo.
Parecia ali completamente perdido, rodeado por aquele manto de neve, plano e
homogéneo.
Ao
ver que saía fumo do castelo da proa, Torarin conduziu até lá a sua carroça e
chamou o mestre do barco, para saber se ele queria comprar-lhe algum peixe. No
fundo da carroça já só tinha um par de bacalhaus, dado que ao longo do dia
tinha passado por todos os pequenos barcos de carga no arquipélago que se
encontravam imobilizados pelo gelo, tendo vendido todo o seu carregamento.
A
bordo, sentados, estavam o capitão e os seus homens, morrendo de tédio. Compraram
peixe ao vendedor, não porque necessitassem, mas para terem alguém com quem
falar.
Quando
desceram para o gelo e foram ter com Torarin, este adoptou uma expressão
inocente. Começou a falar com eles sobre o tempo.
–
Desde tempos imemoriais que não fazia um tempo tão bom como este ano – disse
Torarin. – Já há quase três semanas que temos tido tempo calmo e um frio de
rachar. É diferente daquilo a que estamos habituados aqui, no arquipélago.
Porém,
o mestre do barco, que estava ali com a sua grande galeaça carregada de
barricas de arenque e tinha ficado aprisionado no gelo, numa baía de Marstrand,
justamente quando se preparava para se fazer ao mar, olhou severamente para
Torarin e respondeu:
–
Ah, sim? Chamas tu a isto bom tempo?
–
E que outra coisa havia de chamar-lhe? – retorquiu Torarin inocentemente, como
uma criança. – O céu está claro, azul e sereno, e a noite está tão boa quanto o
dia. Nunca antes me aconteceu poder conduzir, semana após semana, a minha
carroça pelo gelo. Não acontece frequentemente o mar gelar aqui ao largo, e se,
por acaso, algum ano esteve coberto de gelo, veio uma tempestade logo a seguir
quebrá-lo em poucos dias.
O
capitão do barco permanecia de pé, sombrio e taciturno, não dando qualquer
resposta à conversa de Torarin. Este começou então a perguntar-lhe porque é que
não recolhia a Marstrand com a restante tripulação.
–
É que não é mais do que uma hora de caminho a pé, pelo gelo.
A
isto também não obteve qualquer resposta. Torarin percebeu que o indivíduo não
queria abandonar a galeaça nem por um só momento que fosse, com medo de não se
encontrar no seu posto quando o gelo quebrasse. […]
In «O tesouro», romance de Selma Lagerlöf (tradução de Liliete Martins e
revisão de Maria Aida Moura), colecção Gente Independente (n.º 4), Cavalo de
Ferro, Lisboa, Fevereiro de 2010 (1.ª edição).
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