[…]
Procurem a mulher o homem que num
bar
de hotel se encontraram numa
tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam
barricadas
senhas salvo-condutos horas de
recolher
censura prévia à Imprensa
tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da
cultura
é preciso encontrar o casal
fugitivo
que inventou o amor com carácter
de urgência
Os jornais da manhã publicam a
notícia
de que os viram passar de mãos
dadas sorrindo
numa rua serena debruada de
acácias
Um velho sem família a testemunha
diz
ter sentido de súbito uma
estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a
primavera
o doce bafo quente da adolescência
longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham
estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa
cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o
clímax
e a polícia poderá cumprir o seu
dever.
Um homem uma mulher um cartaz de
denúncia
A voz do locutor definitiva
nítida
Manchetes cor de sangue no rosto
dos jornais
É PRECISO ENCONTRÁ-LOS
ANTES QUE SEJA TARDE
Já não basta o silêncio a espera
conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas
de negócio
esperanças de emprego contrabando
de drogas aluguer de
automóveis
Já não basta ficar frente ao copo
no café povoado
ou marinheiro em terra afogar a
distância
no corpo sem mistério da
prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um
homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo
intervalo das persianas
constroem com urgência o universo
do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los
[…]
In «A invenção do amor e outros
poemas», de Daniel Filipe, colecção Forma (n.º 1), Editorial Presença, Queluz de
Baixo (Lisboa), Maio de 2006 (11.ª edição).
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