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Retrato de Bertrand Russell, por Norman Rockwell, para a revista Ramparts |
Todos os
grandes livros contêm passagens aborrecidas e em todas as grandes vidas houve
períodos pouco interessantes. Imaginai um moderno editor americano a quem lhe
levassem o Velho Testamento como um manuscrito novo para ser publicado pela
primeira vez. Não é difícil adivinhar quais seriam os seus comentários a
respeito, por exemplo, das genealogias: «Meu caro senhor, diria, a este
capítulo falta animação; não pode esperar que os leitores se interessem por uma
simples lista de nomes próprios de pessoas sobre as quais lhes diz tão pouco.
Reconheço que começou a sua história num belo estilo e no princípio eu estava
muito favoravelmente impressionado, mas verifiquei que tem um desejo excessivo
de dizer tudo. Escolha as passagens mais claras e importantes, elimine as
supérfluas e volte a trazer-me o manuscrito quando tiver reduzido a uma
extensão razoável.» Assim falaria um editor moderno que conhecesse o medo que
os leitores têm de se aborrecer. Diria o mesmo a respeito das obras clássicas
de Confúcio, do Alcorão, do Capital de Marx e de
todos os outros livros consagrados que provaram ser best-sellers. E
isto não se aplica somente a esses livros. Todos os melhores romances têm
passagens aborrecidas. Um romance brilhante da primeira até à última página é
quase certo que não será um bom livro. A vida dos grandes homens não foi também
emocionante, a não ser em raros momentos. Sócrates gostava de assistir de vez
em quando a um banquete e decerto sentiu grande prazer na conversação enquanto
a cicuta produzia os seus efeitos, mas a maior parte da sua vida passou-a
calmamente com Xantipo, dando à tarde o seu passeio higiénico e acaso
reunindo-se com alguns amigos no caminho. Diz-se que Kant, em toda a sua vida,
nunca se afastou mais de dez milhas de Conisberga. Darwin, depois de ter dado a
volta ao mundo, passou o resto da vida dentro de casa. Marx, depois de ter
fomentado algumas revoluções, decidiu consumir o resto dos seus dias no British
Museum. Por conseguinte, pode verificar-se que uma vida calma foi a característica
da vida dos grandes homens e que os seus prazeres não foram do género dos
considerados apaixonantes aos olhos do mundo. Nenhuma grande obra é possível
sem trabalho persistente, tão absorvente e tão penoso, que poucas energias
deixa para os divertimentos mais esgotantes, a não ser os que servem, durante
as férias, para recuperar a energia física e dos quais o alpinismo é o melhor
exemplo.
In «A conquista da felicidade», de
Bertrand Russell (tradução de José António Machado), Colecção Filosofia
& Ensaios, Guimarães Editores, Janeiro de 2001 (9.ª edição).
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