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Pseudópode ousado dum pequeno corpo
retraído, o seu destino ideal seria permanecer eternamente fugidio dentro da
carne da nação, como uma protuberância rebelde, de vontade indómita e
aventureira. Expurgado de vieirismos sebastiânicos, de saudosismos
contemplativos e junqueirismos retóricos, podiam partir dele, já não as
caravelas impossíveis do passado, mas os veleiros possíveis do presente. Longe
da astúcia minhota, da agressividade transmontana, da mesquinhez beiroa e da
arrogância alentejana, nenhum outro sítio tão azado para o português iniciar
quotidianamente a grande façanha de renovação interior. Mais do que as terras
que os do Infante acharam, o que teve importância nacional verdadeira foi o
alargamento da consciência de cada mareante, a sua comparticipação no alvoroço
renascentista. Não podíamos dar Erasmos, nem Leonardos, nem Luteros, nem
Galileu. Mas podíamos dar esforço, energia, heroicidade, ferocidade,
curiosidade e obstinação. A hora exigia todas as formas de superação humana. Ao
lado do pensamento livre, a arte inconformada; a par da fé discutida, a ciência
objectiva. Faltando a qualquer povo a graça desses dons, havia vago ainda o
campo vasto da acção, metade do mundo por arrancar das trevas, o Atlântico e o
Pacífico inviolados à espera de navegantes. Foi essa verdade que Sagres nos
ensinou, imperativamente a apontar o longe…
Obedientes e sem mais delongas, num
mergulho de alcatrazes, atirámo-nos então daquela rocha branca ao abismo azul. E
descobrimo-nos. Encontrámo-nos universais em toda a parte do globo, mas,
sobretudo, dentro da nossa própria perplexidade. Já não éramos apenas da
Vidigueira, de Belmonte ou de Vila Real. Éramos daí e também da certeza de que
pisávamos um planeta redondo, onde todos os caminhos iam dar à única maravilha
que se podia ver claramente vista: o homem e os seus mil recursos de expressão.
Chegado o momento, saíam-lhe das mãos, realizadas, as obras que o génio, o meio
e as circunstâncias lhe permitiam: teorias, sistemas, invenções, quadros,
estátuas, poemas ou continentes.
Eufóricos, porque justificados,
vimo-nos por algum tempo legítimos cidadãos do mundo. Humanistas do nosso
específico humanismo, até dos defeitos fizemos virtudes. Até nas andanças do
espírito, para que estávamos tão mal apetrechados, conseguimos milagres. Os
próprios que se perdiam contavam singularmente a perdição. Cada qual arrancava
de si o melhor que tinha na inteligência, no instinto e no coração, e trazia-o
à tona da consciência ou em sabedoria, ou em beleza, ou em santidade. Foi um
apogeu.
Depois, esquecemos a lição. A
intolerância religiosa, que o ar do largo não arejara, expulsou o judeu e o
capital; a terra não dava carvão nem petróleo; os frutos reais do esforço
dispendido iriam fugir-nos das mãos. Era preciso opor a essas riquezas do
progresso outros valores igualmente cotados na praça da civilização, que teriam
agora de ser desencantados de não sei que Tormentoso interior… Mas não.
Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas
empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica,
ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações
alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade.
Mas a lenga-lenga não enterneceu o
pedaço de chão que nos mandara ser inquietos e temerários. Cada vez mais seguro
da sua força indicadora, que a própria inactividade acumulava, e a que bastaria
apenas actualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do
perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver
transformado num cemitério de renúncia colectiva – necrópole onde os cadáveres
não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente.
E deu-se o inevitável: como aquelas
realidades que se desconhecem, embora continuamente presentes a nosso lado,
assim o teimoso promontório de esperança, há séculos, permanece ignorado junto
de nós. E as próprias ondas, cansadas de tão estranho absurdo, escavam nas
ilhargas do rochedo e minam-lhe os fundamentos. Indignado, o «mar português»
quer destruir o pesadelo, ou, pelo menos, transformá-lo numa ilha onde não
possam chegar peregrinos da impotência. Quer destruí-lo, ou separá-lo de
Portugal.
In «Portugal» (prosa), de Miguel Torga,
edição do autor, Coimbra, Dezembro de 1980 (4.ª edição revista).
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